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A confissão

O silêncio era consistente, Padre Tenório quase conseguiria tocá-lo. Se pudesse, o rasgaria sutilmente. Precisaria palavra. Mas não tinha nada a dizer. Gregório também não. Não mais.


Tudo começou com aquele estrondo, como se alguém tivesse caído contra as portas da igreja. As grandes portas de madeira entalhadas. Depois ouviram-se os murros, urgentes. Padre Tenório deixou correndo a sacristia, apressando-se pela nave. Ouviu a voz abafada de Gregório: “Abre, mano! Por favor!”. Destrancadas as portas, Gregório entrou, lívido, pousando no irmão os olhos esbugalhados. “Preciso me confessar”, disse já dirigindo-se ao confessionário, os dedos úmidos da água benta com a qual fazia, fervoroso, o sinal da cruz.


Padre Tenório voltou à sacristia e vestiu a batina. Tentava pensar o que poderia ter ocorrido com o irmão. Ou o que ele poderia ter provocado. Era um homem bom. Cristão, sem dúvida. Mas tinha o pavio curto. Gregório era o mais velho, tinha aberto os caminhos de uma geração. Tenório vinha logo atrás, sempre protegido pelo irmão maior, e mais forte. Quando as palavras passaram a importar mais do que a força, o jogo virou. Tenório cuidava do irmão, retribuindo o que recebera quando menino. Apesar de suas tantas diferenças, amavam-se. Em meio a conjecturas que o deixavam apreensivo, o padre tentava manter a calma - era parte do ofício. Acomodou-se no fundo do confessionário e respirou fundo. Dali, via o irmão banhado pela luminosidade do crepúsculo que atravessava os vitrais coloridos. Essa imagem comoveu-o.


Gregório se pôs a falar. Tudo tinha acontecido muito rápido, não houve sinal que adivinhasse a tragédia. O que narrava era assombroso, era inimaginável. Padre Tenório sentia um aperto no peito, como se tivesse sido golpeado. A cadeira onde sentava parecia afundar, o chão sumia sob seus pés. Sentia náusea. Buscou um ponto fixo onde escorar os olhos, de forma que não visse o irmão. Para não cair nas palavras. Gregório seguia numa torrente que se tornava estranhamente tranquila. Quase lógica. Contava em detalhes a cena, as reações, os gestos. Descrevia o corpo sem vida estendido no chão, aquele corpo tão conhecido pelos dois, mas que assim narrado se tornava estranho. Era um corpo só corpo, vítima das razões inexplicáveis de Gregório. Quantos instantes são necessários para um fim? Quantos mal-entendidos? Um piscar de olho, uma eternidade. Padre Tenório começou a ouvir um leve zumbido. Agudo, ininterrupto.


Quem é esse irmão? O que é um irmão?


O zumbido agora gritava. Era um desespero.

Será que Gregório também ouvia esse apito, e por isso falava tanta dor?


Então veio o silêncio. Toda a fala cessou, e também o zumbido. O silêncio se derramou sobre o confessionário, sobre a igreja toda. Sobre a luz do crepúsculo que já não havia. Padre Tenório suspirou, enfim. Aliviado, respirava tentando ordenar os pensamentos. Refugiava-se no silêncio morno, repousava naquela pedra firme onde precisava pisar para poder seguir. Buscava as palavras com as quais romperia o silêncio. Seus olhos já podiam deixar aquele ponto fixo para olhar para o irmão. Ainda temia, mas precisava saber se o reconheceria depois do que tinha ouvido. Quem eram depois desse acontecimento?


Padre Tenório olhou para fora do confessionário. Gregório já tinha partido.



junho 2021


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