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Análise de uma fobia em uma menina de treze anos


Vou trazer a vocês um breve relato da análise de uma adolescente. Trata-se de uma menina que chega ao consultório se queixando de que, repentinamente, passou a sentir medos. Prefere não sair mais de casa, pois andar na rua, por lugares onde haja muita gente e muito movimento, a faz sentir-se mal, receia desmaiar. Seu coração começa a bater mais forte, suas pernas amolecem. Tem medo de cair e morrer. Consultou um cardiologista, pois ela pensou que podia ter um problema no coração. Ele recomenda que ela observe os sintomas, e sugere que pode ser algo de “fundo nervoso”.


Em uma de suas primeiras sessões ela me entrega um pequeno papel de carta no qual escreveu, em casa, uma pequena história de seu medo, situando antes, durante e depois. Vou reproduzi-la, pois é bastante sucinta:


Antes: Eu não tinha medo de sair de casa, ir para lugares movimentados, e tinha combinado de sair para ir ao cinema. Era a primeira vez que eu ia sair sozinha. Durante – Páscoa – A gente ia para a missa. Eu estava com uma tontura durante a missa. Então eu fui para a janela respirar e começou a me dar outra tontura e aí acelerou o coração e as pernas começaram a adormecer e eu já estava muito mal e pensei que ia desmaiar. Então, fomos embora. Raramente o meu pai vai na missa, mas justamente nesse dia ele resolveu nos acompanhar, por sorte. Depois: Eu comecei a ficar com medo de sair na rua, de fazer compras, de todo o tipo de atividade que eu pudesse fazer fora de casa. Mas aos poucos foi melhorando, só que eu ainda não gosto de sair no movimento. Mesmo eu querendo sair.


Penso que um ponto deve ser desde já destacado neste relato. Trata-se da referência ao fato do pai ter ido à missa “por sorte”. A companhia constante – tanto que ela nem precisa referi-la – é a da mãe. Escreve “a gente, nós, etc” sem sequer mencionar quem é essa pessoa com quem faz conjunto. De saída nos mostra como está colocada na relação parental: fazendo conjunto com a mãe, e seu pai surgindo por sorte. Note-se, então, que o momento em que sua fobia surge – o que ela denomina “durante” – é precisamente quando o pai está presente.


Estamos diante de uma adolescente que apresenta uma fobia. A alusão à obra freudiana que proponho no título fala da referência primeira que temos, em psicanálise, de um caso de fobia. Trata-se da análise do pequeno Hans, o menino de cinco anos analisado por seu pai, sob os olhos do professor Freud. É a partir dessa obra, bem como da leitura dela por Jacques Lacan, que pretendo propor uma articulação entre as particularidades da fobia e da crise adolescente.


Parece tratar-se de um caso de agorafobia – a dificuldade de sair de casa, de estar na rua, esse espaço tão aberto, vago. Freud diz que a agorafobia é a "angústia de tentação”[1], Lacan, por sua vez, diz que é a “fobia da castração”[2]. Como pensar a angústia de castração num momento em que o sujeito já teria atravessado o complexo de Édipo e suas vicissitudes? No entanto, a fobia coloca justamente essa questão, pois denuncia o que, a partir dessas teorizações, poderia ser chamado de uma “ausência de pai”[3]. O sujeito fóbico se coloca no mundo como se este fosse um espaço sem delimitação, e será precisamente o objeto fóbico que vai estabelecer esse limite, vai colocar um ponto nesse espaço aberto, sem fronteiras. Por alguma razão, torna-se necessário temer algo para poder então movimentar-se, de acordo com o que o objeto lhe proporciona enquanto situador.


É a esse exercício, de situar por onde movimentar-se, que essa adolescente se vê lançada. O trabalho da análise de uma fobia é acompanhar o deslizamento que vai sofrer a significação do objeto fóbico. Do mesmo modo que o cavalo temido pelo Pequeno Hans mudava constantemente – pois ora Hans temia que caísse, ora que fizesse barulho com as patas, ora que puxasse carroças carregadas – o medo de andar na rua dessa adolescente também foi sofrendo modificações. Ela passa a temer principalmente os lugares movimentados, como o centro da cidade e os shoppings. Tem muito medo de andar de ônibus, porque pode se sentir mal e terá vergonha de pedir para descer. Começa a imaginar que, ao sentir-se mal em público, algumas pessoas poderão supor que esteja grávida. Quanto à questão da rua, aparece algo mais: segundo o pai, as meninas que andam na rua são “galinhas”. E ela mora numa rua onde há um grupo de adolescentes que circula o tempo todo, jogam bola, fazem festas, se visitam, etc. Ela ronda essa questão do associar estar na rua com ser “galinha”, sempre dizendo de seu medo de que o pai, ao vê-la na rua, vá buscá-la a tapas.


É possível identificar, nas constantes modificações que o medo da rua vai sofrendo, o que é próprio da construção de uma metáfora: os significantes antes querem dizer uma coisa, depois querem dizer outra. Encontramos aí uma tentativa de recolocação da dimensão simbólica, visto que esse deslizamento significante se faz em torno do objeto fóbico, que é o objeto que vem denunciar a ausência do pai. Se o pai pudesse se fazer presente, simbolicamente, o objeto fóbico se tornaria dispensável.

Assim, nesse deslizamento significante, alguns medos foram sendo abandonados pela paciente, dando lugar a outros. Passa a considerar a possibilidade de ter medo de “ficar” com algum menino, e associa as manifestações de seu medo – pernas amolecidas, coração batendo mais forte – ao que acontece no enamoramento. Ao mesmo tempo, passeia por construções míticas relativas à concepção. Quando sua menstruação demora a vir, se pergunta se não estaria grávida. De certo modo, brinca com isso, supondo ficar grávida de um extraterrestre, ou, quem sabe, de “alguém”. Entretanto, diz que não lhe aconteceu nada que possa se assemelhar a uma relação sexual, e diz isso assim mesmo, vagamente, como tratando-se de algo que pudesse lhe passar despercebido. Considera então suas hipóteses como impossíveis, e diz que a única possibilidade é estar grávida do Espírito Santo. Essa entidade religiosa tem aqui um valor especial, pois enquanto constrói seus mitos, relata como seus pais se conheceram: na missa de primeira comunhão da filha que o pai teve em seu primeiro casamento. O pai conta-lhe a cena de seu enamoramento, ressaltando que conhecera a mãe da paciente ainda menina, e a reviu naquela missa, quando já era uma mulher.


O tempo foi passando. Ela entrou no segundo grau, mudou de escola. A nova escola era extremamente ameaçadora, e ela se viu lidando bem com tudo de novo que a escola e a condição de secundarista lhe trouxeram. Tem mais facilidade em falar com os meninos, circula com tranquilidade no novo grupo. Não tem mais medo da rua, ou dos lugares movimentados. O único medo que se mantém é o de andar de ônibus, diz que quando esse medo passar, estará boa. Lamenta o tempo perdido com tanto medo, na fase que acredita deveria ser a melhor de sua vida, pois poderia fazer tudo o que quisesse. Atribui aos pais a culpa por tudo o que lhe aconteceu, pois quando pequena foi muito protegida e os pais não permitiam que saísse. Agora, em função de seu medo, a incentivavam - mas aí não adiantava mais.


Traz então um sonho: sai com a mãe para buscar o pai, e, quando chegam ao local, encontram o pai mal, teve um ataque cardíaco ao ler uma carta que dizia que sua filha estava namorando. Em função do ataque, ele fica guenzo. Levam-no para casa. Segue-se uma outra cena: o pai está em frente de casa, cortando uma árvore com um facão. Ela sai para a rua, e alguns tarados vêm em sua direção. Ela grita: “Pai, pai!” mas ele não pode ajudá-la, pois está guenzo.


É um sonho que soluciona o problema. Seu pai ficou guenzo, imperfeito. O que não o impediu de usar um facão para cortar uma árvore. E algo agora permite que chame por ele, ainda que ele não possa ajudá-la. Duas sessões após esse sonho, afirmou não ter mais nada para me dizer. Conseguiu andar de ônibus, não tem mais medo. Vinha ao consultório duas vezes por semana, quer vir uma só. Continuou vindo, por mais dois meses, relatando os fatos de sua vida cotidiana, como fazem os adolescentes em análise. Depois disso, não quis vir mais, disse que queria se dar alta, encerrando assim sua análise.


Proponho, então, pensar a particularidade do surgimento de uma fobia na adolescência. Costumeiramente encontramos a fobia na infância, por ser um sintoma típico na vida infantil, justamente pelo fato de que é na infância, mais precisamente nos momentos em que a criança está ocupada com a conflitiva edípica, que a questão da entrada do pai simbólico fica colocada. O surgimento de uma fobia, naquele momento, denuncia a ausência paterna e anuncia a necessidade da instauração de uma dimensão simbólica para viabilizar algo da ordem da subjetivação. Mas estamos diante de uma adolescente, que já passou por tudo isso, e vemos que não se trata de uma psicótica - pois esta seria a estrutura esperada se quiséssemos pensar em alguém que não estivesse de nenhuma forma inscrito na dimensão simbólica. Faz parecer, então, que a entrada do pai como interditor no momento da dissolução do Complexo de Édipo deixou algo em aberto. A operação que instaura a castração não se mostra definitiva, ficou para trás algo que agora, na crise adolescente, se recoloca. E não é sem razão que se recoloque no momento da crise da adolescência, pois é aí que entra em jogo que o sujeito fale em nome próprio, que aceda à posição de adulto, e posicionar-se como um adulto é também poder responder algo sobre sua posição sexual. É impossível responder a essa questão sem estar tomado na dimensão simbólica, pois não se trata aqui do sexo biológico, mas de qual posição assumirá, se masculina ou feminina [4]. Isso se dá de forma quase incipiente na infância, pois a entrada em jogo do simbólico colocará a questão, mas o encontro de fato com a posição sexual se dará nesse momento da adolescência quando, passado o dito período de latência, o sujeito será convocado a responder por isso, e devemos considerar aqui que é na adolescência que o sujeito se encontra com sua real possibilidade de procriação [5].


Observe-se que a paciente situa o momento anterior ao surgimento da fobia como aquele em que ia sair sozinha pela primeira vez, a partir daí começaria a fazer o que quisesse. E foi diante deste mundo tão amplo que se descortinava que precisou de um objeto fóbico, pois não lhe seria possível transitar por todo aquele espaço sem poder estabelecer nele alguns limites. Seu pai apresentava-se demasiadamente real, e com isso era totalmente impossível para ela transitar por um mundo tão cheio de olhares, pois todos os olhares eram para ela. O olhar paterno tornou-se o objeto fóbico. Nesse jogo de olhares, é interessante pensar que foi justamente a presença do pai na cena originária da fobia que consagrou-a como tal, pois o pai, estando lá “por sorte”, apontava algo de sua evanescência. A cena da missa é um belíssimo apelo à presentificação do pai, que fazia lembrar sua ausência em sua presença física, sua presença “por sorte”, mas ainda assim, uma presença fundamental.


O sonho, que condensou elementos essenciais, aponta para uma saída histérica. O pai, presente, mas guenzo. Ela certamente reclamará sua incompletude, ao mesmo tempo que o enaltecerá, por algum motivo. O que importa aqui, de qualquer modo, é o restabelecimento da presença simbólica do pai, ou, melhor dizendo, a confirmação de sua presença simbólica. É possível que essa necessidade de confirmação do lugar simbólico do pai retorne. Na verdade, é certo que irá retornar, como um lembrete de que algo sempre se manterá em aberto na metáfora constitutiva, que ela é sempre falha, por essência. Ainda assim, em sua crise adolescente, essa menina encontra em sua fobia, ao exemplo das crianças pequenas, a possibilidade de construir uma metáfora que a auxilia a administrar a falta paterna. Pelo menos por enquanto...



Texto publicado originalmente no livro Adolescência, entre o Passado e Futuro. Porto Alegre, Artes e Ofícios Ed. 1997.


[1] FREUD, Sigmund. Inibição, Sintoma e Angústia. [Tradução de Max Göetze], Edição para circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1994.


[2] LACAN, Jacques. A relação de objeto e as estruturas freudianas. Edição para circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 1992.


[3]Faço aqui uma atualização que me pareceu importante ao reler o texto: no caso dessa menina, a função paterna estava encarnada na figura do pai, e ela buscava sua dimensão simbólica - e então “recorre” à fobia.. (2021)


[4] Tenho muitas críticas, hoje, a essa restrição de possibilidades que aparece aqui: “se masculina ou feminina”. Haveria muitas outras, fora desse binarismo. Mantenho dessa maneira para não descaracterizar o texto. E considerando que eram essas duas possibilidades que a paciente trazia - então assim eu a escutei. (nota da autora, 2021)


[5] A palavra “procriação” me incomoda um pouco, parece biologizar o texto. No entanto, não encontrei substituição que me agradasse e coubesse, já que havia uma preocupação dela com a própria gravidez - era isso que se colocava. (nota da autora, 2021)



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