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infância





A menina olha desde sua fotografia, num domingo de inverno, cabelo preso com fita branca, repartido do lado esquerdo, o único lado possível de reparti-lo ainda hoje. Há coisas que não mudam com o passar dos anos. A menina tem olhos de jabuticaba, assim lhe diziam, e disso não esqueceu. Também diziam que nasceu feia, cabelos apenas sobre as orelhas, aparentando uma careca precoce, disso também não esqueceu. Diziam ainda ter sido uma bebê que chorava muito, e bastava que lhe pusessem a mão sob a cabeça (o ínfimo gesto que anunciava o colo) para que o choro estancasse imediatamente. Gostava de colo, a menina. Há coisas que não mudam com o passar dos anos. A mulher gostaria de saber pedir colo como fazia aquela bebê, gostaria de saber provocar o tal ínfimo gesto que faria cessar a dor que rasga seu peito, mas há coisas que são desaprendidas com os passar dos anos. A menina olha a mulher que olha a menina tentando descobrir os nomes do seu olhar e do seu sorriso, e que configuram, para ambas, um enigma. É possível ver a cena por trás da imagem, há um adulto segurando a máquina fotográfica, que pede à menina para olhar e sorrir. A menina responde olhando e sorrindo. Aquela menina procura atender os pedidos dos adultos com precisão e prontamente, pois fazendo isso recebe de volta também olhares e sorrisos, e até colo. Ou ao menos ela assim acredita em seu raciocínio infantil. Há coisas que não mudam com o passar dos anos, ainda que seja atingida a dita maturidade. A mulher olha a menina que olha a mulher, e então vê, e repara, que ela pergunta. Sim, ela pergunta em silêncio, não se ouve sua voz: é isso o que queres de mim? Este olhar, este sorriso, é isso? Te faço feliz? Me amarás, e me darás amparo e colo se eu assim te responder? A mulher vê naquele instante fulgor que a menina aprendia uma lição, mas que ainda não sabia (era cedo) que aquela aprendizagem lhe custaria demais. E que também lhe custaria demais desaprendê-la. Porque há coisas que mudam ao longo dos anos, como as aprendizagens e os amores, mas é difícil apreender metamorfoses. Porque as perguntas da menina reverberam nos ouvidos da mulher, as duas no mesmíssimo corpo, e a mulher não tem respostas. Porque a mulher e a menina se alternam em quietude e desassossego. Em seu corpo convivem absurdas contradições, diariamente. E então elas esperam a chegada de cada noite para acolherem-se uma à outra, para aninharem-se no próprio colo e, com alívio, se encontrarem em sonhos.



novembro 2024

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