Amor é assunto difícil de palavrear. É delicado escrever sobre o amor, faltam palavras para falar de amor, é impossível descrever o amor. No entanto - e talvez por isso mesmo - é tema escrito, falado, cantado à exaustão. Intrigante paradoxo: a impossibilidade de descrever o amor e os sentimentos que acompanham o enamoramento parece fazer com que tentemos, mais e sempre, dar conta com palavras disso que não damos conta, seja a plenitude e a empolgação que acompanham o encontro com o ser amado, seja a infelicidade e a dor inominável do seu avesso. O amor – moeda de dois lados, tão doce quanto amarga - é cantado incansavelmente em música, filmado em suas mais diversas versões no cinema, escrito e reescrito em prosa e verso na literatura. E em nosso dia-a-dia, é onipresente nas revistas femininas, nos programas de rádio, nas colunas dos jornais. Haja palavra...! E ainda assim elas não são suficientes. Nunca serão.
O fim de uma relação amorosa é das experiências mais difíceis de se atravessar. Ele costuma ser antecedido por um tempo em que a comunicação entre o casal se torna particularmente truncada, e eles, que antes pareciam se entender com muito pouco, não se entendem mais. O começo de uma relação amorosa é fortemente marcado por uma súbita compreensão mútua, pois tudo (ou quase tudo) parece combinar: gostos comuns são descobertos, afinidades reveladas, até as vontades são semelhantes, e é fácil ceder. As palavras se tornam desnecessárias diante da sincronia entre dois. Há pequenas diferenças, claro que sim, mas o que são elas perto da alegria e júbilo de sentir-se amando - e amado? É um tempo em que o corpo fala alto, no seu jeito sem palavras de tanto dizer: e os corpos se aproximam, dançando uma coreografia que parece ter sido concebida pelo melhor coreógrafo. A dança é embalada com palavras de amor, e as outras (aquelas que podem ser ásperas e inoportunas) perdem lugar, é melhor não fazer uso delas, tão poético o balé dos amantes... Falar torna-se supérfluo, já que as palavras adquirem o poder de “reduzir” a magnitude do sentimento, ameaçando que ele perca toda a magia, o clima, a cor.
A economia das palavras no encontro se opõe ao seu excesso na despedida. Se no começo elas eram poupadas, no fim elas são ditas à exaustão, na tentativa repetidamente frustrada de fazer-se entender pelo outro. As palavras não são suficientes – mas dessa vez porque não há palavra dita que faça chegar ao outro a mensagem que se quer transmitir. Chega a parecer que a língua falada não é mais compartilhada, tamanha a dificuldade de comunicação. A magia da compreensão se vai.
A razão pela qual nos encantamos por uma pessoa e não por outra é um enigma. Por mais que imaginariamente se possa fazer uma lista de características que a eleita deveria preencher pra ocupar o posto, não raro escolhemos justo aquela que não corresponde ao check-list. O que produz o encontro escapa ao dizível – e o que escapa faz com que as palavras sejam pouco importantes naquele momento. Quando o encanto se desfaz, tem lugar a desilusão, e então é preciso falar: lembrar dos começos, evocar o que foi compartilhado, inventariar conquistas feitas a dois, repassar os sonhos comuns - os já realizados e (o que é ainda mais doloroso) os que ainda faltava realizar. Há palavras que dêem conta disso?
O escritor israelense Amós Oz é autor de “A caixa preta”. Trata-se de um romance epistolar: são cartas trocadas por personagens distintos, sendo os principais um homem e uma mulher que foram casados, e estão separados – e sem comunicarem-se – há sete anos. As cartas entre os dois são ácidas, revelam amor e ódio que convivem , sendo mal aplacados pela distância e o silêncio entre eles – já que, quando se escrevem, estes sentimentos ressurgem como se não tivessem ficado recolhidos no silêncio dos anos - estavam em stand-by. Na retomada do contato, as feridas são reabertas e ressurgem com força o desejo e amor intensos que uniram o casal, bem como as mágoas e traições que os desuniram. A metáfora do título do romance - “caixa-preta” – propõe a existência de um lugar físico onde habitaria a comunicação que antecedeu o fim, como num desastre de avião. A caixa seria a morada onde poderíamos encontrar o entendimento perdido, as últimas falas, as palavras malditas que provocaram o desastre fatal. Estaria ali o material capaz de restabelecer a compreensão antes tão reconfortante?
Não encontrar palavras que cheguem ao outro é desesperador, joga o sujeito numa condição de desamparo ímpar, pois contamos muito com as palavras, que nos dão a sensação (por vezes autêntica) de que nos comunicamos uns com os outros. Mas essa comunicação é incompleta, falha, já que as palavras são tão-somente um código que supomos compartilhar - são parte da ponte que erguemos entre nós e os outros, feita também de gestos, olhares e atos. E não vale a pena subestimar estes outros componentes...
No texto de Amós Oz, no entanto, algo se recompõe a partir da análise da caixa-preta. Não se trata de um reencontro água-com-açúcar, mas o delicado tramar de outra comunicação possível entre dois – que ali parece mais interessante que o silêncio. Isso nem sempre acontece... pois ainda que encontremos a caixa-preta, que decodifiquemos a voz ali guardada (ouvindo incansavelmente a gravação) sempre restará algo da separação que não é possível elaborar no endereçamento ao par perdido. Mas o efeito do tempo, se acompanhado e contemplado, tem imenso valor: é no distanciamento promovido pela passagem do tempo que cada um pode (quem sabe?) deslocar-se a ponto de recuperar palavras gravadas, atribuindo a elas novos predicados (menos gravidade, mais leveza) que permitam novos encontros, outros gestos – laços.
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