“Devia ser proibido debochar de quem se aventura em língua estrangeira”.(p.5) Assim Chico Buarque inicia seu Budapeste, romance publicado em 2003, do qual me servirei para construir o percurso que sugiro no título deste trabalho: pensar o processo de análise como uma experiência estrangeira.
A frase inicial de Budapeste introduz o tema da língua estrangeira, expondo, através do deboche, a frequente fragilidade com a qual nos deparamos ao tentar falar noutra língua, desconhecida. Trata-se de uma verdadeira aventura. Bem sabemos os apuros nos quais podemos nos ver metidos ao tentar pronunciar uma palavra nunca dita, ao formular uma frase sem conetivos, desconhecendo precisamente o efeito dessas palavras no interlocutor estrangeiro. Não é uma experiência qualquer. Mas esse desconforto não se dá apenas entre línguas diferentes. Sabemos que a comunicação entre as pessoas nunca é plena, pois existe um terreno incerto separando o que se diz do que se escuta.
A indagação que dá origem a esse texto, então, diz respeito a qual efeito podemos supor na experiência de pronunciar-se noutra língua. O que é, para o sujeito, aventurar-se em língua estrangeira? Essa aventura pode provocar alguma modificação subjetiva? Há palavras que não existem numa língua, mas existem noutra – como a palavra “saudade” com a qual a língua portuguesa conta, mas que não existe na língua inglesa. É claro que o inglês terá outros recursos para dizer saudade, mas... trabalhando com os significantes como fazemos, não podemos supor que essas sutilezas sejam completamente sem efeito. As palavras, no contexto da análise, têm um lugar privilegiado; as palavras usadas pelo analisante têm o valor de escolhas, escolhas que dizem do inconsciente.
Gostaria de iniciar, com vocês, uma leitura do romance Budapeste. A narrativa propriamente dita começa assim: “Fui dar em Budapeste graças a um pouso imprevisto quando voava de Istambul a Frankfurt (...)”. José Costa, que é quem nos conta essa história, pára em Budapeste por acaso e, obrigado a passar a noite num hotel à espera do dia seguinte, quando retomará a viagem, se vê tomado pelos noticiários, que escuta sem cessar, em húngaro. Não consegue distinguir uma palavra da outra, “seria como pretender cortar um rio a faca”. Mas, sendo madrugada, o noticiário é repetidas vezes transmitido, e o personagem se vê como enfeitiçado por essa língua que, diz ele, é a “única língua do mundo que, segundo as más línguas, até o diabo respeita”. (p.6)
O pouso fora imprevisto. Assim como era imprevisto o encontro com o húngaro. Diz ele ao encerrar esse mesmo parágrafo: “Tenho esse ouvido infantil que pega e larga as línguas com facilidade, se perseverasse poderia aprender o grego, o coreano, até o vasconço. Mas húngaro, nunca sonhara aprender” (p.7). Assim o leitor se depara com esse estranho encontro de José Costa com a língua húngara, encontro que captura leitor e personagem. Após ouvir o húngaro à exaustão, passando a noite em claro no hotel, o personagem consegue decorar mecanicamente uma parte do noticiário (não à toa, a reportagem que se referia ao avião do qual ele fora obrigado a desembarcar). Mas logo o texto se esvai da memória. No restaurante e no aeroporto, ele espera ouvir mais alguma palavra em húngaro, mas garçons e funcionários dirigem-se a ele em inglês. Ainda que ele implore: “in hungarian”, ouve apenas um “Ô”, ou um silêncio desconfiado. Deduz que os húngaros têm ciúme da sua língua, o que só a torna mais fascinante para ele. Desolado, transpõe o freeshop - “longo e cintilante território livre, um país de língua nenhuma, pátria de algarismos, ícones e logomarcas” (p.10) - e despede-se de Budapeste com saudade da língua que desconhece.
A narrativa segue, e então passamos a conhecer o universo que cerca José Costa. Trata-se de um ghost-writer, (a tradução literal, do inglês, seria escritor-fantasma) um escritor anônimo: escreve por outros. Tendo iniciado sua carreira escrevendo trabalhos universitários, monografias e cartas, passa a escrever também para políticos, gente importante, tendo seus discursos proferidos em campanhas, e seus artigos publicados em jornais de ampla circulação. Seu sócio pendura seus artigos nas paredes do escritório, e os inclui no book da agência. “José Costa é gênio”, diz. José Costa retruca: “Mas Álvaro, e a confidenciabilidade?”. Álvaro nem lhe ouvia. José Costa escreve: “...os artigos nas paredes me incomodavam, o book me incomodava, estar em evidência era alguma coisa como quebrar um voto.” (p.17) Não que lhe fosse pouco prazerosa a atividade da escrita, pois quando se via só na agência, lia e relia seus próprios artigos. Diz ele: “Naquelas horas, ver minhas obras assinadas por estranhos me dava um prazer nervoso, um tipo de ciúme ao contrário. Porque para mim, não era o sujeito que se apossava da minha escrita, era como se eu escrevesse no caderno dele.” (p.18).
José Costa passa a gozar de uma certa vaidade. É nesse momento que lhe chega um convite para participar do encontro mundial de escritores anônimos, em Melbourne. Nesse bizarro evento, reúnem-se escritores das mais variadas línguas, para discutir temas de interesse comum, como ética e direitos autorais. Passadas as discussões técnicas, o encontro dá lugar a depoimentos pessoais constrangidos, nos quais os escritores recitam seus textos, revelando inclusive a identidade de seus supostos autores. “Aquilo começava a lembrar uma convenção de alcoólicos anônimos que padecessem não de alcoolismo, mas do anonimato.” (p.20).
De volta ao Brasil e à agência, o personagem vive uma experiência sinistra. Seu sócio contrata mais alguém para executar os serviços antes exclusivos de José Costa, e o novo funcionário é fisicamente semelhante a ele, e escreve exatamente como ele escreveria: o novo escritor fora orientado para escrever pelos outros, mas mantendo o estilo de José Costa. E mais ghost-writers são contratados, todos tão iguais a ele quanto o primeiro, o que é narrado com um quê de fantástico pois os outros são reproduções dele, têm sua figura, vestem-se como ele, usam os mesmos óculos, têm a mesma tosse e, o mais aterrorizador de tudo, empregam as mesmas palavras que ele empregaria.
José Costa passa a escrever autobiografias, textos narrados em primeira pessoa. Assinalo o movimento da escrita autobiográfica como um elemento para pensar, posteriormente, no tema da análise. O personagem escreve uma primeira obra, e recebe a encomenda da segunda: a autobiografia de um alemão, que vive no Rio de Janeiro. Um estrangeiro, portanto. É quando está com essa encomenda na cabeça, que José Costa parte para Istambul, para sua segunda participação no encontro de escritores anônimos. E então se dá o evento antes narrado, a parada imprevista em Budapeste. Retomo aqui a narrativa do romance, e vale reproduzir o reencontro do personagem com sua mulher: “...olhando a Vanda assim de repente e tão de perto, mais uma vez me admirei; minha primeira dúvida, sempre que vinha de viagem, era se a Vanda ganhara viço na minha ausência, ou se em meus pensamentos ela desbotava.” (p.27) A vida segue seu rumo, Budapeste e o húngaro tornam-se somente uma lembrança. A autobiografia do alemão não deslanchava, até acontecer um evento inusitado: Costa ouve seu filho emitir estranhos ruídos com a boca durante a noite, e reclama disso para sua mulher, acha aquilo estranho e desagradável. Ela lhe diz que o menino está apenas o imitando... ele não entende, e ela lhe revela que, desde que retornou da última viagem, ele próprio emite sons estranhos, enquanto dorme. Assim José Costa descobre que fala húngaro em seus sonhos. A língua magiar é despertada. Dias depois, ele tem a oportunidade de ir a uma sessão de autógrafos de um renomado escritor húngaro, onde se reencontra com a língua. Casualmente, então, desanda a escrever a autobiografia do alemão.
Faço aqui uma breve digressão. Por que é nesse momento que o personagem libera a escrita do texto que antes estivera truncada? A presença do ghost-writer contratado por seu sócio produz nele um incômodo: ele vislumbra sua própria caricatura ao ver-se reproduzido em outros. Num relato que mais parece um pesadelo, ele lê o que o sujeito escrevera, e consegue adivinhar cada palavra: “era aflitivo, era como ter um interlocutor que não parasse de tirar palavras da minha boca, era uma agonia. Era ter um plagiário que me antecedesse, ter um espião dentro do crânio, um vazamento na imaginação.” (p.24) O personagem se encontra com seu sintoma.
Depois dessa visão angustiada, vem a descoberta dos sonhos em húngaro. A língua estrangeira, a princípio esquecida, ressurge do inconsciente. Podemos conceber o inconsciente como estrangeiro para o sujeito, estrangeiro para a consciência. Sabemos que no inconsciente os opostos convivem sem problemas, conforme formulou Freud na Interpretação dos Sonhos (1901). Mas já na consciência isso não se passa do mesmo modo. Disso depreendemos que José Costa, quando defrontado com a estrangeiridade não codificável que é seu inconsciente, se põe a trabalhar. O estrangeiro (inconsciente, húngaro) demanda do personagem uma elaboração, que ele fará a partir da escrita.
Escreve assim a história de Kaspar Krabbe que, ao chegar no Brasil, conhece uma mulher que lhe apresenta o Rio de Janeiro, mulher por quem se apaixona. É no corpo nu dessa mulher que ele escreve a primeira palavra na língua brasileira. A escrita no corpo feminino vicia, e nos corpos da primeira mulher, e de todas as outras que lhe permitiram, com frenesi, essa escritura, redigirá toda sua autobiografia, intitulada O Ginógrafo. Terminado o texto, José Costa experimenta uma sensação diferente em relação ao seu escrito. As palavras não parecem ser dele, o livro foi escrito de uma vez só, num ritmo diferente do seu. E tem a sensação de que o livro é seu, e preferia não vendê-lo por dinheiro algum. É nessa produção que José Costa vive a experiência da autoria, definida justamente pela não coincidência entre o autor e aquele que escreve o texto. A relação estabelecida com seus escritos anteriores era radicalmente diferente: ele se reconhecia nos textos, usufruindo do prazer debochado de que outros os assinassem. Kaspar Krabbe registrara em horas e horas de fitas sua monótona e desinteressante história, história que José Costa simplesmente ignorou, pois a autobiografia desse esquisito alemão foi seu primeiro texto, o primeiro texto propriamente seu.
Num impulso, José Costa parte novamente para Budapeste. Lá, numa livraria, procura um livro que o auxilie a aprender o húngaro. Quando toma um “húngaro em 100 lições”, tem o livro arrancado das mãos por uma mulher. “E quando ela afirmou que a língua magiar não se aprende nos livros, fiquei pasmo, porque a sentença me soou perfeitamente inteligível. Ainda me perguntei se ela teria se expressado em português, ou em inglês, ou mesmo em romeno, mas tanto era em húngaro que não distingui uma só palavra. E contudo não me restava dúvida, ela me afirmara que a língua magiar não se aprende nos livros”. (p. 60) Iniciam-se, assim, as lições de húngaro na casa de Kriska. Costa se vê inebriado pela língua, e se deixa ficar em Budapeste. Passam-se dias e noites nos quais ele é guiado por sua obsessão pelo húngaro. O envolvimento amoroso com Kriska acontece, e não é fácil distinguir a mulher da língua. Diz ele, falando da primeira vez em que a vê nua: “Mas ela ficou quieta, o olhar perdido, não sei se comovida pelo meu olhar passeando no seu corpo, ou pelo meu falar pausado no idioma dela, branca, bela, bela, branca, branca, bela, branca. E eu também me comovia, sabendo que em breve conheceria suas intimidades e, com igual ou maior volúpia, o nome delas.” (p.46).
O amor pela mulher se confunde com o amor pela língua. A cena da livraria remete à infância, pois o personagem não distingue uma palavra da outra, mas sabe o que a mulher quer lhe dizer. Assim como, ao aprender a língua materna, a criança desconhece as palavras enunciadas pela mãe, mas depreende seus significados. O prazer no aprendizado da língua é revivido pelo personagem, com volúpia. A língua, o corpo feminino – afinal, não era disso que se tratava na autobiografia do alemão? José Costa, antes de relançar-se a Budapeste, escrevera a história do homem que escrevia nas mulheres, no corpo nu das mulheres do Rio. José Costa em Budapeste é um estrangeiro como o alemão no Rio, um estrangeiro que, através do corpo da mulher, busca escrever uma história, ou melhor, busca escrever outra história. Nessa escrita, faz a passagem de ser inscrito pela língua materna para, apropriando-se da outra língua, inscrever-se, fazer-se autor.
Bem, deixo por aqui a narrativa, pois não pretendo esmiuçá-la ainda mais. O texto de Chico toma um caminho pouco linear, e sua cronologia resta confusa. Não vale dissipar a confusão. Interessa-nos que depois disso o personagem vai e volta de Budapeste, numa trajetória inconstante, perdido das referências de tempo, mas não de lugar. Gozará do sucesso estrondoso do seu O Ginógrafo, no Rio de Janeiro, em silêncio. Silêncio quebrado somente ao revelar para Vanda que é ele o autor do livro que ela começava a ler pela terceira vez. Em Budapeste, trabalhará no Clube das Belas-Letras, dominando o húngaro a ponto de, também em terra estrangeira, ser um ghost-writer. Mas lá ele só conseguirá escrever em poesia, não em prosa. Entre uma língua e outra, uma mulher e outra, seu filho com Vanda e o filho de Kriska, o mar do Rio de Janeiro e o Danúbio, José Costa, ou Zsoze Kósta (como será chamado em húngaro) transitará, meio a esmo. E vou poupar vocês do final do livro porque acho injusto revelá-lo - como diz José Miguel Wisnik em sua resenha do texto: “Budapeste, no exato momento em que termina, transforma-se em poesia.”
Por que me interessou trabalhar Budapeste? A partir desse romance é possível formular uma série de interrogações, enlaçadas com a psicanálise. Tomarei o caminho de tecer aproximações entre o romance e o processo de análise, passando por alguns elementos encontrados no texto. O primeiro deles - e que me parece bastante evidente, é a presença constante do acaso. O acaso permeia o texto como permeia a vida, como permeia as narrativas em análise. Mas gostaria de tomar o acaso enlaçado ao inusitado. O acaso, bem o sabemos, só adquire alguma importância quando encontra eco no inconsciente. E é precisamente o eco inconsciente que torna o acaso inusitado, pois é no retorno do que a princípio seria irrelevante como algo que faz diferença que o sujeito pode registrá-lo como inusitado. O inconsciente, quando de alguma forma se revela, é sempre surpreendente. Não encontramos o inconsciente quando o estamos buscando, ele se apresenta, surge, se mostra, sendo elaborado no só-depois de seu próprio surgimento.
Podemos também aproximar o acaso da emergência do real, que impele o sujeito a elaborar, possibilitando uma inscrição, seja ela simbólica ou imaginária. Traça-se, então, um percurso: o acaso, tornando-se inusitado, passa a ser um operador para o sujeito. O texto é a narrativa de um tempo numa vida, tempo no qual alguns movimentos importantes se dão. Mas essa narrativa não é feita de pré-determinações, de encontros ordenados por um suposto destino. O acaso vai se fazendo presente, dando rumo aos acontecimentos, não casualmente. O acaso vai produzindo eco para o personagem, que dirige o olhar sobre o que se passa - um olhar surpreso, que o faz, ainda que impulsivamente, escolher cada caminho. Assim, o inconsciente se revela no decorrer do texto, determinando e sendo também, por sua vez, determinado pelo rumo escolhido, como na análise.
A presença do inconsciente, revelada através do acaso e de seus efeitos, confere um ritmo próprio à narrativa. O leitor tem a impressão de que o personagem por vezes lhe foge: mas afinal pra onde ele vai? Mas onde vai estabelecer-se? Vai ficar com uma ou outra mulher? Mas que rumo, afinal, vai tomar esse texto, essa história? O personagem se deixa ir, o leitor, se quiser acompanhar, também precisa se deixar levar. É tudo um pouco confuso, fora de ordem. Assemelha-se à fala do sujeito em análise: fala que os analistas se deixam escutar, privilegiando justamente sua falta de ordem, insistindo para que o analisante associe livremente, desgarrando-se do cronológico e do que lhe pareceria relevante, para deixar falar o inconsciente. O interessante é para onde isso leva...pois ao final do texto o leitor é levado à pergunta: mas afinal, quem é o autor da história? Quem fala no texto? Bem, tratava-se justamente de um ghost-writer...o tema do romance é também o da autoria.
Romance, autoria. Falar sobre autoria, contar um romance. Tomo aqui o segundo ponto encontrado no texto de Chico Buarque: a incursão na língua e no lugar estrangeiros, que faz o personagem transitar por uma outra condição de enunciação. O que interessa é qual relação podemos estabelecer entre o processo de análise e a incursão numa língua estrangeira. Quando um sujeito se lança a falar em análise, também se encontra e se perde em sua própria língua. A língua, antes falada com tanta naturalidade, começa a ser redimensionada. As palavras se perdem de seu sentido, encontrando outros contornos, outras sonoridades. Poderíamos propor que falar em análise é como falar em outra língua, falar como um estrangeiro. Um estrangeiro de si mesmo. A fala na análise requer uma posição de exterioridade do sujeito em relação à sua vida, se faz necessário um distanciamento para que possa falar. Como se a vida se passasse no palco, e ele, para falar, sentasse por alguns momentos na platéia, para poder ser espectador de si mesmo. Através de outro olhar sobre o drama, o sujeito se permite falar desde outro lugar. Nesse sentido, falar desde outro lugar, falar em outra posição discursiva, é falar em outra língua. Uma língua na qual as palavras perdem a pronúncia fácil, dando lugar a uma escuta mais atenta. As palavras adquirem outro valor.
Um exemplo do valor das palavras em análise é oferecido por Freud, em Construções em Análise (1937). Diz ele: “É verdade que não aceitamos o ‘não’ de uma pessoa em análise por seu valor nominal; tampouco, porém, permitimos que seu ‘sim’ seja aceito. (...) Um ‘não’ provindo de uma pessoa em análise é tão ambíguo quanto um ‘sim’ e, na verdade, de menor valor ainda.” (p.296) Este é um exemplo muito singelo, que nos interessa pois ‘não’ e ‘sim’ poderiam ser tomados, em sua essência, como palavras relativamente simples, palavras que não se desdobram em polissemias. Mas o não e o sim, na boca do analisando, podem ser ouvidos pelo analista no sentido oposto de seu sentido. Em A Negativa (1925), encontramos o famoso exemplo que Freud traz, do paciente que, ao relatar um sonho diz: “Não é a minha mãe” – o que pode ser ouvido como: sim, é a mãe dele. O ‘não’, nesse contexto, é justo o que viabiliza que a frase seja enunciada, pois sem a negativa o sujeito não ousaria revelar o pensamento que lhe veio à mente.
Podemos tomar também a frase de Lacan, que encontramos no Seminário 1(1954): “O discurso, desligado de um certo número de convenções pela regra dita fundamental, põe-se a jogar mais ou menos livremente em relação ao discurso ordinário, e abre o sujeito a essa equivocação fecunda por onde a palavra verídica encontra o discurso do erro.” (p.322). A palavra encontra o discurso do erro...a palavra, emitida com o objetivo de encerrar um sentido, transmitir um conceito, encontra o erro. Encontra outra coisa. Assim, o sujeito em análise encontra a palavra em outro lugar, a palavra dita não coincide com a palavra pensada. A palavra dita revela o sujeito do inconsciente, esse eu estrangeiro para o sujeito.
Não é possível levar esse escrito a termo sem mencionar a transferência. A experiência da análise se dá entre um sujeito que fala, e outro que escuta. No romance, encontramos esse outro nas mulheres: as de Kaspar Krabbe (que são de José Costa, afinal), em cujos corpos ele escreve sua história; e em Kriska, essa mulher que lhe oferece sua língua e seu corpo, permitindo que por ambos ele passeie, transite. Sua disposição para ensiná-lo, para ouvi-lo tentando pronunciar-se em húngaro, permitirá que ele faça a passagem de ser inscrito pela língua materna para inscrever-se em outra língua. Essa língua estrangeira que passa pelo corpo da mulher amada, é como a fala do analisante que passa pelo ouvido do analista.
A volúpia pela outra língua encontra amparo no outro, tem em Kriska um endereço. José Costa escreverá, com Kriska, sua história, repetindo a autobiografia do alemão. Em Recordar, repetir, elaborar (1914), Freud enuncia: “...a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e (que) a repetição é uma transferência do passado esquecido...” (p.197). Na transferência, o analisante atualiza, através do analista, sua relação com o Outro – repetidamente, pois embora a relação com o analista pareça não guardar semelhança qualquer com todas as outras relações que estabelece, ela é sua repetição. Mas essa repetição tem algo de inaugural...é através dela que o sujeito poderá recontar sua história, podendo assim inventar-se.
Talvez a história de José Costa seja uma metáfora da experiência analítica. De certo modo, algumas questões se impunham a ele: sua clandestinidade transformada em vitrine pelo sócio, o bizarro encontro com outros escritores anônimos (no qual o anonimato revela-se a ele como um vício do qual ele e outros padecem), a contratação de seus clones na agência, o desbotamento da esposa em sua memória... A outra língua aparece para ele como uma possibilidade de escrever outra história. Em Budapeste experimenta ser outro José Costa: Zsoze Kósta, que certamente mantém traços do outro, mas posiciona-se de forma diferente, parece mais implicado em seu traçado – mais escritor, menos fantasma. A incursão por outro país e por outra língua poderia convocar o sujeito a falar desde outro lugar, a reinventar-se? Talvez a experiência estrangeira possa produzir como efeito uma outra amarragem do sintoma do sujeito, uma possibilidade de inserção na cultura diferente da estabelecida em seu lugar de origem.
Iniciei este texto lembrando do quanto é particular a experiência de tentar falar em outra língua. O som emitido parece estranho, a língua enrola, o que se escuta nem sempre é o que se quis dizer. Quem puder recordar uma primeira lição de língua estrangeira, saberá do que se trata… Mas essa língua estranha, uma vez saindo da própria boca, força um movimento de apropriação. Esse desconforto com a emissão das palavras faz lembrar os começos de análise, as primeiras entrevistas. É comum que um novo analisante, ao começar a falar ao analista a quem decidiu procurar, produza uma fala hesitante. Ele se sente desconfortável, não sabe sobre o que deve falar, por onde começar...titubeia. Afinal, o que esse outro vai escutar do que ele diz? Irá interpretá-lo? O que interessa dizer a ele? O desconforto, com o passar do tempo, até se desfaz, mas não de todo. O analisante se escutará num ato falho, num sonho...escutará as palavras que ele mesmo enuncia, experimentando sua perda de sentido, algumas ressignificará. No processo de escutar a si mesmo, de escutar sua língua, experimentará outras construções possíveis, outras versões.
Retomo a frase de José Miguel Wisnik: “Budapeste, no exato momento em que termina, transforma-se em poesia”. José Costa, em sua versão húngara, não escreverá mais em prosa, mas sim em poesia. O que muda da prosa para a poesia? As palavras podem ser as mesmas, o arcabouço gramatical é o mesmo, mas o ritmo é outro, a ordenação das palavras é outra, conferindo ao texto outro colorido, outra musicalidade, outra inscrição. Entre prosa e poesia, entre escritor e poeta, se processa uma passagem, passagem que denuncia uma invenção. Inventar-se em análise, inventar-se na experiência estrangeira da análise. Deixar-se atravessar pela língua, para poder ser o mesmo em um novo texto.
Publicado no Correio da APPOA nº136. Porto Alegre, junho de 2005.
Referências
BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Cia das Letras, 2003.
FREUD, Sigmund. Construções em análise (1937). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980.v.23.
_________. A Negativa (1925). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980.v.19.
_________. Recordar, repetir, elaborar (1914). In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980.v.12.
LACAN, Jacques. O seminário: livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
WISNIK, José Miguel. O autor do livro (não) sou eu. Crítica a Budapeste, disponível no site www.chicobuarque.com.br
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