Ainda bem que deixamos março para trás - ele que é o mês da volta das férias, quando precisamos “colocar a vida em ordem”, restabelecer os horários, retornar à “vida real”. Nada fácil. Mas embora seja difícil voltar à rotina, é importante lembrar que ela nos organiza. O ritmo cadenciado da sucessão dos dias - com hora para acordar e tarefas a cumprir -, ainda que nos cause sofrimento ao ser retomado, tem seu valor.
Recentemente li uma entrevista da atriz Denise Fraga que me deu uma pista sobre isso. Ela falava sobre os muitos projetos nos quais se envolve, dentre eles televisão, cinema e teatro. Diz ela: “Eu adoro fazer projetos múltiplos, mas eu preciso fazer teatro. É onde existe o jogo do erro e do acerto, onde há a chance de fazer uma mesma cena 30 vezes e de repente se dar conta: ‘É isso! Como eu não tinha sacado antes? É o que eu chamo de milagre da repetição.” Essa expressão me provocou um estalo, como uma descoberta: o milagre da repetição!
É verdade que fazemos algumas coisas de maneira repetida – até buscamos isso: ao encontrarmos um “modo de fazer” que nos agrada, tendemos a repeti-lo porque isso nos traz algum conforto. Com o passar do tempo, no entanto, começamos a olhar a repetição com desconfiança, e a tomamos como algo negativo, como se ela nos tornasse pessoas desinteressantes e monótonas. Em tempos de culto ao novo, a repetição não é muito bem-vista.
Para os psicanalistas o tema da repetição está presente na experiência diária. Quando uma pessoa pergunta se já contou uma história, sugerimos que a conte de novo, e de novo, e todas as vezes que forem necessárias. Porque é muito raro que a história se repita exatamente como da última vez em que foi contada – em cada nova narrativa é possível identificar uma diferença. O sujeito que contou a história há um mês (ou uma semana, tanto faz) já não é mais o mesmo. E os personagens da história podem também ter mudado, desde a última vez, diante dos seus olhos; assim como o cenário e as circunstâncias podem ser agora percebidos de maneira diferente. A cada vez que se conta a própria história, ainda que ela pareça sempre a mesma inevitável história, alguma coisa nela (e quem sabe no contador) se altera.
A expressão usada por Denise Fraga me fez querer transpor essa noção que já me era conhecida pelo trabalho analítico para o fazer cotidiano. Afinal, ao repetir muitas vezes o mesmo dia-a-dia, também podemos fazer descobertas – se aquilo que escolhemos fazer está sendo positivo, interessante, ou se há uma outra maneira de fazer que nos surge por acaso, como uma surpresa que se mostra onde não a esperamos. É impossível saber antes de fazer, e antes de repetir. É ao repetir que percebemos as pequenas sutilezas de nossas escolhas. Talvez isso possa nos deixar um pouco mais em paz com as repetições cotidianas: ao contrário do que se supõe, elas podem, a partir de nossa própria e valiosa experiência, nos ajudar a variar, inventar, transformar. O novo surgindo ali onde aparenta se tratar sempre do mesmo: até parece milagre!
Publicada no Jornal Sul 21 em abril de 2016.
Muito bom . Sempre tive excelente memória e nunca me ocorreu que por alguma razão, de um dia para outro não lembraria mais o que falei a meia hora atrás, pois o acidente me deixou assim. Por quase dois anos repeti as mesmas histórias na terapia e só era avisada ao final. Comecei a dizer para as pessoas que me alertassem caso estivesse repetindo o assunto. Nunca o fizeram. Exceto em casa, onde o fazem quase como repressão. Já melhorei muito, troquei de terapeuta e para auxiliar em raras falhas de momória, a questão diacutida é a retomada da 'rotina' como forma de organização e descoberta de uma nova forma de viver . O texto coube como uma luva.