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Só aos sábados?


O cheiro de café inundava a pequena cozinha do meu apartamento de solteira. Acordava preguiçosa e lentamente, usufruindo cada minuto do prazer da manhã de sábado sem compromisso. A cabeça doía um pouco por conta do vinho ruim da noite anterior. Paciência, não era grave. Nada grave. Nada que o café não pudesse resolver.


Peguei o celular pra me distrair enquanto esperava o pão saltar da torradeira, quando entrou uma mensagem dele. Miguel? Recebi com susto minha própria imagem: uma, duas, três fotos, variações de mim mesma, na casa dele, sorrindo. “Me deparei com essas fotos”, escreveu.

Lembrava bem daquelas fotos, como de quase tudo que vivi com Miguel. Quanto tempo fazia? Foi num sábado, também. Tínhamos acordado bem dispostos depois de uma noite de sexo e descanso. Faxinamos, juntos, o apartamento pela primeira (que eu não sabia seria a única) vez. Ele cozinhou, tomamos muita cerveja, e na tardinha nos fotografamos. Ouvíamos o Tom. Eu me sentia tão feliz, que me ocorreu o pensamento besta de que aquele era um dos melhores momentos da minha vida. Olhava pra ele exaltando, meio bêbado, a genialidade do Tom. Olhava pra ele, ouvia o Tom, cantava, encantada neles.


E agora de pé na cozinha, encostada na geladeira pra não cair de novo, eu olhava aquelas fotos que já tinha deletado do meu celular justamente pra não me “deparar” com elas. Pra não lembrar daqueles dias que ainda doíam. Faz muito tempo ou foi ontem? Por que essa mensagem, logo agora que penso tão menos nele, que não procuro mais teu rastro nas redes? Logo agora que finalmente consegui parar de inventar mentiras pra mim mesma, que parei de criar versões fantasiosas e menos cruéis pro que aconteceu: um abandono puro e simples. E doloroso. Logo agora que eu tinha parado de dialogar contigo na minha cabeça? Já recomeçou. Merda. Socorro. Menos drama, Catarina. Só não deixa isso se apossar de ti. Já vai passar. Por que agora, Miguel? Por que não fui assistir tua última palestra? Tu pensou que eu iria, pra te ver com a pessoa cafona que tu namora, pra que eu visse ela te admirando efusiva, como ela faz quando comenta com mil corações cada coisa que tu posta?


Tu desapareceu, Miguel. Tu me ignorou como se tivéssemos uma relação eventual, quando na verdade nos falávamos várias vezes por dia, passávamos os finais de semana juntos, nos víamos durante a semana... Sabíamos do que o outro gostava, o que comia, como transava, como gozava, e quantas vezes à noite levantava para mijar e tomar água. Contávamos um pro outro os nossos sonhos, mesmo quando não dormíamos juntos. Eu conhecia o cheiro da tua casa, do teu café e da tua nuca. Eu sabia em que posição tu gostava de dormir. Lembro da sensação de enfiar o meu nariz no teu corpo pra adormecer. De acordar com calor no meio da noite, debaixo das tuas tantas cobertas, e tirar minha camiseta, sabendo que logo mais tu acordaria e me alisaria o corpo, dizendo “ué, cadê a camiseta?”, tuas mãos mal disfarçando o tesão, tua voz rouca das primeiras palavras ditas no dia. Preciso esquecer. Preciso te esquecer. Não quero te esquecer. Essas lembranças me comovem e me aquecem o peito. Mas aí lembro também que tu terminou comigo por mensagem, Miguel. Por mensagem. E na semana seguinte tu postou uma foto sorrindo, uma foto (mal) tirada por ela. E quando eu vi aquela postagem, deitada antes de dormir, a cama desapareceu debaixo do meu corpo, e eu caí como Alice dentro da árvore. Quando lembro disso eu sinto raiva, Miguel, e ela me consome, e o calor no peito é substituído por uma ardência ruim. Eu não queria mais sentir toda essa raiva, porque ela me faz mal. Eu queria lembrar daquele dia das fotos só com amor e carinho, só com saudades. Sem saudades. Queria não sentir mais saudades de ti. Queria não sentir mais raiva de vocês. Queria ser justa pra sentir só raiva de ti e não dela – que afinal foi atrás do que queria: tu. Eu tava até conseguindo, Miguel. Apaguei nossa conversa e nossas fotos - nossas parcas memórias. Eu vinha até conseguindo, apesar de ter sido banida da tua vida sem qualquer cuidado ou consideração. E foram incontáveis dias até eu não ser acordada pela lembrança da tua ausência, até que ela não fosse a primeira coisa que me vinha à cabeça quando eu abria os olhos. Miguel. Tua imagem foi perdendo aos poucos o colorido, e o teu cheiro foi desaparecendo de dentro do meu nariz e do meu cérebro, e o teu gosto e a lembrança do teu corpo quente, do teu nariz gelado, do toque firme das tuas mãos, foram evanescendo. Indo, indo… indo pra longe de mim.


E foi escrevendo que me afastei dele. Foi a escrita que serviu de impulso pra produzir a distância maior. Comecei a escrever essa história, aquela história, pra lembrar, pra guardar os detalhes, e ao mesmo tempo pra esquecer. Porque eu precisava esquecer, e ainda preciso. Foram muitas páginas, os dedos batendo no teclado, esmurrando o teclado. E eles foram perdendo velocidade, ganhando suavidade, e a urgência e o frêmito da escrita foram também se afastando de mim. E não voltei a ler aquelas páginas, com medo da dor que elas escreveram. E não sei se vou voltar a elas, dar-lhes corpo e contorno: haveria ali um romance abortado, como o que eu vivi com ele?


Eu vivi um romance com ele? E ele, também? Não sei. O pão saltou - há quanto tempo? Vou até a janela e vejo a movimentação na rua. As grandes faixas, os vendedores de camisetas, as pessoas distribuindo adesivos. Quanto tempo passou, quando eu acordei? Olho de novo o celular, buscando as combinações sobre os encontros de logo mais. Me movimento, me visto, tomo o rumo de mais uma manifestação contra o governo autoritário e fascista, onde quero gritar e encontrar as gentes que, ao menos nisso, querem o mesmo que eu. Uma multidão junto a qual quero me irmanar e me dissolver. Dissolvida nela espero me sentir forte. A lembrança da mensagem dele retorna, que inferno. Será que escreve por me querer ainda, por sentir saudades? Não, Catarina, ele só lembrou daquela noite que foi boa como tantas outras. Pra ele é só isso e pra mim é mais. Não quero permitir que ele volte a me habitar, que voltem a me assombrar as palavras, o corpo, as lembranças. Que voltem a me alegrar. Até a sombra da dor me dá medo.


Tenho lido muita poesia, e outro dia escrevi um poema bonito, até. Comprei livros de poetas que ainda não li, de outras que eu já gostava, e separei os livros de poesia que quero ter perto, bem perto de mim – eles ganharam um espaço especial na estante do quarto. É a poesia que tem me feito companhia nos últimos dias. Talvez eu ande sem paciência pra romance.



maio, 2022


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