um corpo à deriva: dança
por Edimilson de Almeida Pereira
Edições Macondo - 2020

“Tua boca colada a um céu de palavras mudas.”
No ano passado, uma pessoa querida me indicou o autor Edimilson de Almeida Pereira. Desde então, tenho lido suas poesias, de qualidade incontestável. Ele é dono de uma escrita tocante e que desacomoda. Uma escrita que muitas vezes dói, e que não proporciona alento para o leitor - mas por ser tão bem engendrada, torna-se irresistível, pelo menos para mim, que adoro um bom texto. As sensações que sua leitura me traz são comparáveis às que me proporcionam Raduan Nassar e João Guimarães Rosa - dois grandes escritores. Exagero? Digo da minha experiência, única e particular - mas talvez não só: embora leiga em teoria literária, diria que os três têm em comum uma certa veia existencialista, somada à presença de personagens que conjugam simplicidade, complexidade e sabedoria de maneira ímpar, além de uma extrema habilidade com a palavra. Tomo o fio do existencialismo para chegar ao romance um corpo à deriva: dança, sobre o qual quero escrever.
O romance não facilita a vida do leitor - é um anti-romance. Temos dois personagens principais, Eu e Tesfa, dois jovens universitários que estão dentro de um quarto, prestes a executar seu pacto de auto-aniquilamento (o livro se divide em duas partes: um quarto na cidade e uma cidade no quarto). No quarto se desenrola a narrativa, que são os pensamentos de Eu e de Tesfa, suas fantasmagorias, suas memórias. A ação é o próprio pensamento dos personagens, ela surge como prenúncio de si e não se conclui enquanto tal. O tema do texto é a própria existência desses personagens, (e de mais alguns outros: Chagas, Fin e o Velho Angular), e as reflexões que esse existir exige deles, seu esforço na busca de uma consciência de si e de seu (não) lugar no mundo. A existência, como disse Sartre, precede a essência.
“Se narrar é tirar do horror algum traço de humanidade, então o que foi dito a meu respeito não tem sentido. Ao falarem sobre mim, me negaram essa humanidade. Mas eu sou, Tesfa, tu sabes. Eu sou. Falaram sobre mim com os olhos banhados no horror, não poderiam ver em mim senão o horror - a grande obra dos violentos.”
Há (no mínimo) dois grandes temas sobre os quais Edimilson apoia sua anti-narrativa: o horror e a linguagem.
O horror que está no passado e no presente, na violência contra as pessoas trazidas de África pelos navios negreiros, contra as que hoje tentam atravessar o oceano em botes buscando uma vida digna em outros países que não os seus, onde sobrevivem. O horror do silenciamento branco diante do sofrimento daqueles que, escravizados ou submetidos, construíram seus monumentos, seus prédios históricos, em suma, seus países.
A linguagem, esse recurso infinito e indomável. Ainda que tenham tentado (e por vezes conseguido) dizimar línguas, silenciando-as, substituindo-as por outras línguas “supremas”, ainda que tenham sido usadas as armas mais diversas para que a história suja seja esquecida, é com a linguagem que contamos para recuperar a memória e narrar o horror, para transmitir apesar do apagamento. A linguagem com o que ela carrega de paradoxal, vítima e algoz.
“Os que nos lançaram à escória têm seus nomes escritos em letras grandes sobre as fachadas das fábricas. Mas a tinta se desgasta e mostra, aos poucos, os esqueletos de que se nutriram. (...) Elas [as mãos] ainda se chamam governo e riscam no horizonte o mapa do teu país. A imagem dessas mãos é exata, em tamanho e profundidade: seu peso não pesa nos jornais diários. No entanto, o modo como estão limpas denuncia que algo está fora da órbita.”
Ao articular linguagem e horror, o autor nos leva a ler o que considero uma proposição estratégica, que não é para nada simples:
“Qualquer mudança do mundo só valerá quando recortada pelo pensamento dos pobres. Enquanto isso, vale a teoria-mínima do escrever com fúria: não dês ao opressor aquilo que ele te ensinou a oferecer; deixa-o órfão de seus artifícios; nunca lhe digas o que aprendeste pela tua própria vontade.” A vida nem sempre é um moinho, mas gira. Quem conhece a velocidade das voltas tem menos chances de ser iludido. (...) Instigado por aqueles que viveram a teoria-mínima, volto-me contra a miséria de um presente que se nega a ser passado. Esse tempo nos veste. E me irrito porque sei que respeitamos o seu método de corte e costura. Temos respondido aos agressores usando sua própria linguagem. Isso não muda a rota das esferas: é preciso mudar o seu eixo se não quisermos ser atingidos.”
Trata-se de uma proposta que busca romper a linearidade das ações e do próprio pensamento, pensamento este que o autor descasca com sua linguagem, expondo ao leitor a fragilidade da tinta que a encobre, mas que não obstante é compacta, e tem muitas camadas. A mensagem não está nas margens, mas no mergulho de olhos bem abertos no próprio oceano - e se o mergulho resultar na morte do corpo, ainda assim a mensagem terá sido transmitida, terá sido lida em sua radicalidade. A genialidade do texto está, também, na ética que ele propõe e a qual faz jus: para transmitir essa proposição da quebra de linearidade, o texto não pode ser linear, e não é. Eu e Tesfa se debatem na procura do que fundamenta seu pacto de aniquilamento, e percebem que o suicídio é um recurso para escapar do extermínio: melhor serem os autores da própria morte. Contraditório? É o embate que travam esses corpos à deriva, prestes a dançarem como amantes, ou “dançarem” como efeito da necropolítica, com direito à autoria sobre seu desaparecimento ou não. O embate se dá na literalidade desse texto que pede para ser mastigado, cada parágrafo abrindo possibilidades, trazendo referências, dançando aos olhos do leitor. A linguagem exerce seu poder enquanto fracassa miseravelmente em conduzir-nos à saída.
“Ser em linguagem é ter um corpo para o que der e vier da vida. E da morte.”
Esse escrito já vai longe, mas é imprescindível falar sobre Tesfa. O nome significa esperança na língua etíope, o amárico. A esperança que Tesfa traz consigo não é a de esperar, mas sim a de sua lucidez. Ela é sem dúvida a personagem mais lúcida, que consegue fazer da linguagem um suco consistente - e consciente. É dela a frase que recortei acima, que vem seguida de: “Quem imaginou sepultar o seu corpo semeou suas narrativas e fez do passado o futuro da linguagem”. Nesse que é o último capítulo do livro, Tesfa fala sobre narrar, sobre a alegria, sobre a mentira e a verdade. Sobre o que é estar dentro de um quarto com Eu, em isolamento: “Desde que acertamos o dia de nossa morte e fechamos a porta às nossas costas, o mundo nos invadiu.” - as palavras de Tesfa-Edimilson são assombro e revelação. Ela é a única personagem mulher do romance, e foi o autor quem a fez assim, possuidora de um pensamento de certa maneira dissonante dos demais. A escolha de Edimilson me faz lembrar José Saramago, que dotava suas personagens mulheres dessa mesma lucidez - por vezes representada pela capacidade real de enxergar, como em “Ensaio sobre a cegueira” e “Memorial do convento.” (Obrigada, Edimilson).
Ao terminar, tenho a sensação de ter recém-começado - nesse escrito, e na vida - e sei que não. Meu escrito (minha existência) padece do efeito da leitura: um corpo à deriva que produz um escrito também à deriva, e que agarra-se às palavras, mesmo tendo a consciência de que elas são fluxo:
“Somos um fluxo mercurial
(...)
O mesmo que assombros.”
Vivo o espanto da leitura e agora da escrita, e para (não) concluir, deixo vocês, mais uma vez, com Tesfa:
“Até agora vivemos o tempo de narrar.
Será sempre oportuno narrar porque esse tempo coloca a pele ao redor dos ossos e faz o corpo seguir em frente. Dentro dele há um tempo que não conta histórias, mas diz o porquê da própria história. Sem ele, o corpo caminha a esmo e não reconhece seus semelhantes. Esse tempo interior é o tempo da linguagem, tão íntimo que parece não existir. Porém, é dele a fibra que faz o mundo existir.”
Edimilson, muito obrigada por tanto.
(essas palavras podem soar banais, elas não dão conta - mas é delas que dispomos)
setembro de 2023
Sou leitora e amante da poesia de Edimilson. O que Ele faz em versos vem da realidade escancarada através das notícias sobre imigrantes mortos ou não. Os que conseguiram se salvar vivem em guetos. E mesmo conseguindo emprego, escolas para os filhos, perdem suas raízes, sua memória, passando a se agarrar ao modelo econômico ocidental de consumidores, iludidos com o sonho de enriquecimento…
Tua escrita acolhe este livro do Edmilson com fúria, escrever para raspar a tinta e deixar aparecer estes esqueletos. Anotei aqui o livro para ler e sempre tuas dicas de leituras preciosas. Adorei teu texto sublinhando estas mudanças importantes das rotas das esferas. E ainda esta imagem de Tesfa, a esperança.... Lembrei especialmente de Milton Santos lendo teu texto e claro, a exposição Coreografias do Impossivel que acabo de ver na Bienal. Obrigado Marieta.
Marieta, que texto tocante. Hoje você conseguiu acertar em cheio. Obrigada, mais uma vez.
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