Segundo contam, eu devia ter em torno de 3 anos. Meus tios me levaram para brincar num grande tobogã. Depois de enfrentar uma fila imensa para subir as escadas, mirei a grande lomba ondulada diante de mim e disse que não desceria. Tinha medo. Eles tentaram me convencer, mas foi inútil – descemos de volta, na contramão da multidão.
Já adulta, fiz estágio em um hospital-dia de São Paulo que atendia pacientes psiquiátricos. Naqueles dias, recebemos um paciente que se conectou à equipe do hospital “colando-se” num terapeuta a cada dia: e assim, desde o café da manhã até a hora de ir embora, passava ao lado de seu eleito. Numa das saídas que fazíamos regularmente, fomos ao PlayCenter, e ele colou em mim. Brinquedo vai, brinquedo vem, o grupo decide descer o tobogã. Um baita tobogã! Fui entrando na fila com ele, apavorada, pensando como eu faria pra me sair daquela enrascada... Olhava para os lados, não via saída. E fui subindo a escada, me vendo sem alternativa senão descer o maldito tobogã. Quando chegamos ao topo, eu trazia tal cara de pavor que uma das minhas colegas me olhou nos olhos e perguntou se eu estava com medo. Respondi com um aceno afirmativo de cabeça, talvez mais envergonhada que amedrontada. Desci o tobogã entre o paciente e ela, de mãos dadas com os dois. Cena ridícula, convenhamos. Mas desci.
Alguns medos são difíceis de explicar. As crianças muitas vezes têm dificuldade de nomear o medo – quando bem pequenas, podem não querer entrar em um lugar escuro sem saber dizer a razão. E os adultos as compreendem, explicam por que não precisam temer, ou simplesmente acendem a luz.
E quando os adultos têm medo, por que tantas vezes não ousam confessá-lo? Será que acreditamos que os medos são deixados pra trás com os brinquedos da infância? Nem todos – alguns efetivamente superamos, mas outros permanecem conosco, lembrando que nossa fragilidade, a despeito do que nos foi prometido para quando crescêssemos, segue conosco. Nos tornamos adultos grandes, fortes e... corajosos? Nem tanto – ou não completamente.
Os adultos têm medo, e muitas vezes de coisas banais: tempestade, escuro, baratas (como, se elas são tão menores que nós?); lugares muito abertos, ou muito fechados, ou muito lotados; tobogãs... Temos medos ridículos porque nossa infância segue nos habitando, nos lembrando que ainda somos inconsistentes, e que por mais adultos que tenhamos nos tornado, de quando em vez temos a sensação de que podemos quebrar, sufocar, desaparecer.
O medo é criado por nós mesmos, ele tem a ver com a história de cada um. O que é temido por uma pessoa pode não o ser por outra, e por isso ele muitas vezes é incompreendido. Nem sempre encontramos pessoas dispostas a se juntarem a nós para lutar contra ele. Pena, pois o medo do adulto pode ser apaziguado da mesma maneira que o medo da criança: com um cúmplice. Alguém que reconheça o medo, que saiba que atravessá-lo é difícil, por mais estranho que isso possa parecer.
Também os adultos poderiam se permitir ter alguém que os ajudasse a dar nome para os seus medos, falar sobre eles sem vergonha. Também os adultos poderiam recorrer a uma companhia para enfrentar os momentos de desamparo. Afinal, seguimos precisando uns dos outros, também nós os adultos, nós os grandes. Às vezes, ainda é bom ter alguém que entre na nossa frente diante do escuro ameaçador, e simplesmente acenda a luz.
Publicada no Jornal Sul21, em agosto de 2014.
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