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Já não lembro quando me encontrei com essa frase da Clarice Lispector pela primeira vez - mas posso dizer que ela nunca me deixou. Ou eu nunca permiti que ela fosse embora. Porque a frase fez eco em mim, como se me lesse. Sou um peixe que morde as palavras-iscas, e ao mesmo tempo uma pescadora de palavras. A metáfora da palavra-isca fica ecoando e se transformando: ora peixe que morde, sempre fascinado pela isca, ora pescadora que lança a isca nas águas do mar ou do rio, na expectativa da palavra que possa surgir, do texto que ela poderia ensejar.  

 

Já não lembro, também, quando comecei a escrever. A ler aprendi muito cedo - desde pequena a palavra me fisgava. Lendo, ao tirar os olhos da página e me distanciar do livro, experimentava narrar a vida com as palavras do escritor, no seu ritmo, mordendo suas palavras, mastigando-as até incorporá-las. E escrevia diários, escrevia cartões de Natal e de aniversário, escrevia cartas. Gostava de ter o papel em branco à minha frente, esperando a primeira palavra, e o texto a ganhar corpo,  tomar forma, a entrelinha conversando com a linha. 

 

Em 2007 participei da Oficina de Escrita do Hospital Psiquiátrico São Pedro, trabalho compartilhado com dois queridos amigos. Ao longo de 3 anos, fomos ao São Pedro uma vez por semana, e no espaço da Oficina de criatividade, sentávamos com pacientes em torno de uma grande mesa para escrever. Levávamos café, cadernos e canetas. O encontro durava uma tarde, depois uma manhã - um tempo fora do tempo, um outro tempo que se inscrevia em nossas rotinas. Tempo de escrever. Todos escrevíamos, cada um à sua maneira: palavras, rabiscos, cópias, falas. Falar também escreve. Para animar a escrita, criamos um saco de palavras, que nos socorria quando elas nos faltavam. Um saco cheio de papeizinhos dobrados, onde pescávamos palavras-inspiração. Desta experiência inesquecível - e inclusive para não esquecê-la - resultaram alguns textos. Um deles já está disponível aqui no site: Palavras-Iscas. Escrito a seis mãos, as minhas, as da Simone e as do Paulo. Inspirado nos encontros da Oficina, no saco de palavras, e, claro, em Clarice.

 

Há alguns meses tive a ideia de compartilhar o que escrevi. Estavam nos meus arquivos, morando inertes no computador: os textos de psicanálise, as crônicas, e o que comecei a escrever desde o início da pandemia da COVID-19, em 2020. O confinamento me convidou a escrever - não foi a primeira vez que os sentimentos de confusão e tristeza me levaram a isso. No ano passado (2021), me aventurei em oficinas de escrita, e me peguei escrevendo pequenos contos; me arriscando na poesia. Ao criar uma pasta com textos escolhidos para compartilhar, não tive dúvidas sobre seu nome: palavra-isca. A palavra pescando o que não era palavra, ainda. A palavra ganha outra razão e sentido quando pode ser lida.  

 

Criei então esse espaço, esse site. Lugar virtual que cada vez mais aprendemos a habitar - e por que não? Espaço de circulação e de trocas possíveis. As trocas são sempre as possíveis. Espero que minhas palavras encontrem outros destinos para além das águas paradas dos arquivos. Dizem que águas paradas não movem moinhos. E se as palavras aqui incluídas gerarem mais escritas, movendo outras águas, ainda melhor. Escrever é convidar à leitura, e a leitura pode ser um convite à escrita. Seguindo com Clarice: “Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio, jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.”

 

Escrever distraidamente pode salvar.

Marieta Madeira

 

 

Agradeço à Simone Moschen e ao Paulo Gleich, amigos queridos, parceiros de tão ricas trocas nas águas da palavra.
Agradeço a companhia e as leituras da Helena Kessler e do Leonardo Zimmer Saldanha - o olhar de vocês me renova. Sempre.
Agradeço à Aline Bei, com quem fiz minha primeira oficina de escrita. Sua acolhida generosa às minhas palavras fizeram toda a diferença. 

Agradeço à Iasmin Schleder pela leveza ao me captar em imagens nas quais me reconheço - e me gosto.

A construção desse espaço só foi possível pela presença constante, incansável e carinhosa da Camila Alexandrini, da Barbara Raulino, da Antônia Madeira Rodrigues, da Flora Madeira Rodrigues e da Gabrielle Marchisio. Amo vocês, gurias.

 

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palavra-isca

“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu.”

Clarice Lispector, em Água Viva

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