“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra – a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio, jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é escrever distraidamente.” Clarice Lispector – Água Viva
Menina-bonita-do-laço-de-fita escreve, escreve, escreve. Escreve sobre suas experiências como usuária da rede de saúde mental. Escreve sobre medicações e internações. Escreve sobre as pessoas que a cercam. Escreve suas fantasias. Não tem dificuldade alguma para escrever: seu texto é fluido, quase derramado no papel. O que lhe custa é terminar o escrito. Parece que só para de escrever por alguma razão externa a ela: a hora de ir embora, o fim do caderno. Não conclui. Compartilha esse traço do interminável com os que escrevem com ela. Até o dia em que uma isca caiu sobre ela, ou melhor, sobre seu caderno... Mas antes de prosseguir com sua história, façamos uma curta viagem ao território onde ela se inscreve.
É ao redor de uma grande mesa, numa sala localizada na labiríntica construção centenária que caracteriza o Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, que se reúnem, semanalmente, os participantes da Oficina de Escrita. Esses sujeitos, oriundos de unidades do Hospital ou de territórios localizados fora de seus muros, sejam eles loucos ou não, compartilham, naquele espaço, um laço comum a todos: as letras. Lá, são convidados a deixar suas marcas sobre o papel, a produzir um registro possível, um traço singular que diga algo de sua subjetividade. A escrita produzida neste território, assim como seus habitantes, é plural. Não está em jogo, ali, a produção literária socialmente valorizada – embora isso não esteja excluído do horizonte do trabalho –, mas sim a possibilidade de inscrever alguma marca singular que possa ser testemunhada pelos colegas, cujas impressões, ao retornarem a quem escreve, demandam que o autor suporte os efeitos de seu escrito no outro.
“Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra”.
Para que o trabalho se desenrole, os oficineiros se valem de vários dispositivos, que funcionam como iscas para que algo venha a se produzir: essas iscas podem ser um texto, uma música, uma visita a um local, uma conversa... O Saco de Palavras, criado coletivamente em um dia em que a inspiração resistia a visitar a Oficina, constitui-se num pequeno “reservatório” de iscas. Para compô-lo, recortaram-se palavras e frases de revistas que, a partir de então, passaram a morar no Saco, à espera de que alguém as retirasse para inspirar seu trabalho. Ora cada um retira uma palavra e escreve algo a partir dela; ora um participante escolhe uma palavra para que outro possa com ela se inspirar; ora inventa-se um jogo com as palavras do Saco, para então desdobrá-las nos escritos.
“Quando essa não-palavra – a entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu”
Em um dos encontros, a notícia de que o armário no qual são guardados os materiais de trabalho havia sido saqueado recebeu os participantes da Oficina; tinha-se reavido o material, mas o Saco de Palavras não fora mais encontrado. Algumas semanas depois do sumiço do Saco – e da confecção de um novo -, ao buscar o caderno de um dos escreventes, eis que nos deparamos com o velho Saco, que estava escondido, espremido entre cadernos do arquivo da Oficina! Resolvemos, então, juntar suas palavras às do novo. Na operação de transpor as palavras do Saco antigo para sua nova morada, o Oficineiro deixou cair, sem querer, sobre o caderno da Menina-bonita-do-laço-de-fita, uma palavra: “minha história”! Menina-bonita-do-laço-de-fita ficou tão contente em encontrar-se com aquela palavra-isca que prontamente pediu cola para fixá-la em seu caderno: a palavra agora era sua. Naquele momento podia dispor não só das palavras que lhe vinham à cabeça (que não eram poucas), mas também dessa “minha história” que o Oficineiro deixara cair quando mudava as palavras de um Saco para outro. Escreveu e escreveu - entre folha e papel, cola e tesoura, palavra e isca - uma história, sua. Até que a história...acabou! Ali registrou um fim, uma interrupção no interminável, um alívio.
Foi a partir da ausência do Saco de Palavras que pudemos aperceber-nos de seu lugar na Oficina. No encontro em que demos com sua perda, logo decidimos fazer um novo Saco, mas não sem antes escrever um texto sobre o “sumiço” do Saco de Palavras. Dentre os escritos que brotaram, destacaram-se as palavras do Bardo, oficinante-cantor, que surpreendeu-nos ao falar de sua relação com o Saco: “O Saco é importante para nós e será sempre importante, porque através do Saco de Palavras tinha muito a nos ajudar no desempenho da oficina. Parece brincadeira, mas o Saco de Palavras é para mim um saco de respostas para a minha memória e para meus amigos motivo de diversão e razão.”
Freud, em um de seus derradeiros textos - Construções em análise, de 1937 - se põe a pensar sobre esse modo de proceder do analista que, diante de um fragmento de história primitiva “esquecido” pelo paciente, oferta algo, uma palavra, para que ele possa transpor o abismo e seguir no trabalho da associação livre. Para Freud, a “construção constitui apenas um trabalho preliminar” (p. 294), um trabalho que deve desaguar na recuperação da condição de recordar por parte do paciente. “O caminho que parte da construção do analista deve terminar na recordação do paciente...” (p.300). Desta feita, um saco de respostas para a memória pode ser um reservatório importante de palavras-iscas para construções. Nele se encontram as tábuas e os pregos capazes de construir a ponte para uma travessia diante do abismo aberto pela ausência das palavras. Nele se encontra a isca que permite pescar o fio da meada e retomar a infinita tessitura da rede de palavras que nos abriga diante dos impasses da vida.
“Uma vez que se pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora”
Mas nem toda palavra que emerge desse reservatório fisga uma memória. Assim como “só o curso ulterior da análise nos capacita a decidir se nossas construções são corretas ou inúteis” (p.300), só o transcurso dos encontros decide sobre a operatividade de uma palavra pescada do “saco de respostas”. Freud nos diz que aquilo que decide sobre a pertinência ou não de uma construção não está na aquiescência ou recusa do analisante, e sim no trabalho que ela inaugura ou na indiferença que dela decorre. Em outro encontro, durante nova rodada de “pesca” de palavras do Saco, o Poeta fisgou a palavra “ladrões”. Olhou-a, pensou um pouco e, com uma expressão de estranheza, devolveu-a ao Saco, para então dele retirar outra. Àquela palavra-construção, o Poeta, com seu gesto, disse um rotundo “não”. Freud, ao problematizar a negativa de um analisando ante uma construção, afirma que freqüentemente se trata de uma “resistência que pode ter sido evocada pelo tema geral da construção que lhe foi apresentada, mas que, de modo igualmente fácil, pode ter surgido de algum outro fator da complexa situação analítica” (p.297). Não nos é possível, portanto – senão no a posteriori – situar o porquê da recusa do Poeta: talvez algum peixe-memória tenha mordido aquela isca, mas o pescador não estava preparado para içá-lo; talvez a presença dos oficinandos-ouvintes, que receberiam suas palavras, o tenha inibido a discorrer sobre o assunto... são inúmeras as possibilidades. Assim como o Saco recebe de volta a palavra rejeitada pelo Poeta, os oficineiros-analistas, inspirados por Freud, aceitam seu gesto, deixando ao curso do trabalho os desdobramentos que possam vir a acontecer.
“Mas aí cessa a analogia: a não-palavra, ao morder a isca, incorporou-a.”
Um Saco de Palavras que inspira escreventes ímpares, como o oficinante-cantor que não se furta a homenagear seus colegas, entre eles o personagem Saco de Palavras. Um Saco-personagem que permite a um Poeta pescar palavra para devolvê-la, dispensá-la. Uma palavra que cai do Saco e encontra guarida nas recordações e nas letras da Menina-bonita-do-laço-de-fita. Acasos, acolhidas. Da acolhida do acaso acabamos por nos tornar “doutores” neste trabalho em oficina, pois dela depende a abertura necessária aos desdobramentos demandados pela complexidade dos objetos psíquicos, “incomparavelmente mais complicados do que os objetos materiais do escavador, e [sobre o qual] possuímos um conhecimento insuficiente do que podemos esperar encontrar, de uma vez que sua estrutura refinada contém tanta coisa que ainda é misteriosa” (p.294). Misteriosas também são as palavras que o Saco nos oferece, quando delas nos valemos, assim como o são os desdobramentos que elas produzem em quem as recebe e os efeitos que são colhidos quando os escritos por elas inspirados são compartilhados. Nesse terceiro tempo – do compartilhamento – não raro uma palavra, lida ou escutada distraidamente, se oferece a alguém como isca, trazendo mais palavras à tona e, assim, alimentando as redes de palavras, memórias e construções que vão se tecendo em torno da mesa que reúne os escritores da Oficina. E não raro já não sabemos bem qual a palavra-isca-origem que fez começar a tessitura da rede, pois no compartilhamento as palavras transitam fácil de boca em boca, de caderno em caderno, adquirindo múltiplas ressonâncias.
Compartilhar as construções parece ser o que ampara o movimento da escrita na Oficina. Cada escrito, com suas particularidades, encontra guarida nos cadernos de cada um e no olhar e na escuta de oficinantes e oficineiros, mesmo que não sejam bem compreendidos, mesmo que não tenham rima, mesmo que não tenham razão aparente. Como nos diz Freud: “...os delírios dos pacientes parecem-me ser os equivalentes das construções que erguemos no curso de um tratamento psicanalítico – tentativas de explicação e de cura...” (p. 303). A marca deixada no papel, no caderno de cada um, é uma tentativa de inscrição que se registra, e que retorna aos oficinantes a partir do compartilhamento. Sejam quais forem as formas com que se dá essa tentativa de inscrição – formas que variam desde poesias a músicas, passando por ensaios e escritos autobiográficos até garatujas ou repetições de números –, é no compartilhamento entre pares-escritores, nos efeitos da acolhida desses escritos, que se dá a possibilidade de encontrar um lugar outro para aquilo que, para todos os sujeitos, não cessa de não se escrever.
“O que salva então é escrever distraidamente”
Marieta Madeira Rodrigues
Paulo Gleich
Simone Moschen Rickes
Publicado no Correio da APPOA n 176. Porto Alegre, janeiro 2009.
Referências
FREUD, Sigmund. Construções em análise (1937). In: Obras Completas. Rio de Janeiro, Imago, 1980.v.23
LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
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