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A palavra que resta

por Stênio Gardel

Companhia das Letras - 2021




" Uma carta inteira. Uma palavra seguindo a outra, quantas palavras? Mandar carta para uma pessoa que não sabia ler, só sendo. A ponta do lápis pairou em cima da linha. O próximo nome tinha escrito a carta cinquenta e dois anos antes. Ao lado do caderno, o envelope encruado, sempre fechado. Raimundo não deixou ninguém ler e envelheceu com o desejo de saber o que ela diz crescendo dentro dele. Feto idoso, rebento tardio. A carta guardava uma vida inteira."


A carta inteira atravessa o romance de Stênio Gardel. A palavra que resta, seu título, pode nos convocar a perguntar: qual seria a palavra? Qual a palavra para Raimundo, um homem analfabeto, nascido no interior do Ceará, que em menino descobre seu amor por outro homem? Que rumo pode dar Raimundo à sua vida depois desse amor? A capa do livro, belíssima ilustração de Daniela Reis, nos acompanha na leitura: os dois meninos que se tocam ao mesmo tempo que se afastam, tomados por um colorido impossível.


As palavras de Stênio nos afetam para além da história que ele conta. Temos a carta, esse motor que nos move na leitura, e temos a cadência da voz de Raimundo, seus pensamentos, seus diálogos interrompidos. Na voz, o sotaque de sua terra. Na narrativa, o ir e vir da vida, as rememorações, o hoje, o ontem e o anteontem - como num processo de análise. E nisso, a beleza da costura, coisa da mãe de Raimundo - o romance é bordado que suaviza a dureza da vida dos personagens. Diante da máquina de costura sem uso da mãe, ele pensa que podia usá-la "...para costurar, vez ou outra, quando uma ou outra lembrança precisasse de um remendo."


A palavra que resta é um romance importante pois nos traz a realidade dura da exclusão em nosso Brasil profundo: analfabetismo, pobreza extrema, preconceito. A vida é teimosia, é apesar de. E apesar de, existe o outro. Existe uma personagem como Suzanný - uma travesti inesquecível, apaixonante, que sabiamente largou da vergonha para viver como queria: "...e quando a porta se fechou atrás de mim, com a rua toda na minha frente, o mundo todo na minha frente, eu soltei a mão da vergonha, fui pra um lado, ela foi pro outro, e fui andando. Estou andando, até hoje, mancando de vez em quando."


Teria mais a escrever sobre esse romance, ele reverbera em muitas direções. Ontem conversamos sobre ele num encontro do Pacto Literário, um clube de leitura pra lá de especial. Stênio esteve conosco, generoso que só ele. A conversa teve esse mesmo tom sensível e generoso, múltiplo. A palavra que resta é assim: nos toca, faz eco na gente, permite trocar, conversar. Dá vontade de escrever. Dá vontade de viver e teimar. Sou só agradecimento.


P.S. Impossível não lembrar da frase de Lacan a propósito do conto A carta roubada, de Edgar Allan Poe: "uma carta chega sempre a seu destino". A palavra que resta renderia um escrito "só" sobre isso, é um romance-isca. Lembrando Clarice Lispector: escrever é o modo de quem tem a palavra como isca...




julho de 2022




2 Comments


stgardel
Jul 10, 2022

Que bonito! 💫

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marietamadeira
Jul 10, 2022
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Teu texto inspira!

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