Na semana passada concluímos um ano de conversas sobre as leituras dos livros da escritora francesa Annie Ernaux, no grupo proposto pela Barbara Raulino e a Giovana Serafini. Eu realmente adoro o efeito de comentar leituras em coletivo, é algo que expande a leitura de maneira surpreendente: o texto cresce, seus ecos são multiplicados pelos ecos em cada pessoa leitora.
Annie Ernaux escreve o que se poderia (não sem controvérsias) chamar de autoficção. Ela escreve sobre si, sobre acontecimentos da sua vida, mas não pretende fazer uma autobiografia, ela não quer contar sua história, fazer de sua vida um romance. Ela escreve por se sentir compelida a contar seus acontecimentos – e, ao fazê-lo, de certo modo os esgota, os reduz. É uma escritora que interessa a quem escreve, pois ao narrar seus fatos, conta sobre escrevê-los; ela fala do processo da escrita, do que quer ou não fazer, e dos efeitos da escrita sobre ela enquanto escreve.
Ao reler um dos seus livros, percebi um efeito raro: não encontrei ali nada do que não tivesse encontrado antes. Afinal, é bem comum que na releitura de um texto sejam encontradas passagens, palavras, ideias que não tínhamos percebido na leitura anterior. Cada leitura guarda novidades, ainda que do mesmíssimo texto, por sua simples repetição. Por isso me estranhei em releituras de Annie Ernaux, e as colegas do grupo me apontaram: talvez seja precisamente isso que ela deseje ao propor essa escrita menos floreada e rebuscada, quase metonímica, sem proliferações imaginárias. As coisas como são, um charuto é um charuto. A vida como ela é.
Annie Ernaux recebeu o Nobel de literatura em 2022, em meio a críticas as mais diversas, uma delas a de seus textos serem romances que contrariam a ideia canônica de romance, sendo assim de menos qualidade literária. Ora, já estamos há algum tempo às voltas com a pergunta sobre que coisa é essa denominada qualidade literária, e ainda bem. A literatura de Ernaux nos ajuda a pensar, assim, sobre o cânone, bem como sobre os processos de escrita, a clínica, a escrita de mulheres, entre outros. Poderosa. Poderosíssima.
Annie Ernaux é publicada pela Fósforo Editora e traduzida por Marília Garcia, Isadora de Araújo Pontes e Mariana Delfini.
novembro de 2024
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