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Dias de abandono

de Elena Ferrante

tradução Francesca Cricelli

Biblioteca Azul - 2016




“Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu marido me comunicou que queria me deixar. Fez isso enquanto tirávamos a mesa, as crianças brigavam como sempre no outro cômodo, o cachorro sonhava resmungando ao lado do aquecedor. Disse-me que estava confuso, que vivia maus momentos de cansaço, de insatisfação, talvez de covardia. Falou por muito tempo dos nossos quinze anos casados, dos filhos, e admitiu que não tinha o que reclamar deles nem de mim. Manteve a compostura de sempre, contendo um gesto de excesso com a mão direita quando me explicou com uma careta infantil que vozes leves, certo sussurro, o levavam para outro lugar. Depois assumiu a culpa de tudo que estava acontecendo e fechou com cuidado a porta atrás de si, deixando-me como uma pedra ao lado da pia.”


Assim inicia a narrativa de Olga, no romance Dias de abandono, de Elena Ferrante. Após ser deixada por Mario, paralisada como uma pedra ao lado da pia, Olga passa por um processo doloroso. Tenta entender o que se passou com seu casamento, o que levou o marido a deixá-la. Tenta se encarregar da casa, dos dois filhos e do pastor-alemão Otto. Tenta manter-se de pé, tenta não enlouquecer enquanto seu mundo desmorona. A leitura é sofrida, pois mergulhamos com Olga em seu desamparo.


Dias de abandono é um romance riquíssimo para pensarmos diversas questões relacionadas ao abandono nas relações amorosas, à escolha pela maternidade e o que ela pode acarretar para a relação amorosa de uma mulher, à relação mãe e filha. A função da escrita de e para mulheres é também um tema fundamental, pois Olga escreve compulsivamente durante esse período - as palavras se tornam lugar onde pode se agarrar.


O que quero destacar, no entanto, é o “vazio de sentido”. Na primeira noite depois que Mario a deixou, Olga relembra um episódio do começo do namoro: Mario, depois de beijá-la, teria dito que não queria mais vê-la. Ela fica chocada, e dias depois ele se desculpa, dizendo ter passado por um “vazio de sentido”. Ele volta a usar essa expressão anos depois, numa crise conjugal. Interessante que Olga lembre precisamente desses dois momentos, e dessa expressão. O que seria, para Mario, um “vazio de sentido”? Ela não sabe. O que ela vai descobrir, no decorrer dos dias de abandono, é o que isso significa para ela.


No ensaio “A frantumaglia”, Ferrante descreve sua escrita da dor: “Os sentimentos fortes são assim: explodem a cronologia. (...) Escrever a respeito da dor também tem esse movimento de confusão. O eu narra de modo pacato, realiza sínteses nítidas, faz com que os eventos deslizem lentamente. Mas quando a onda de um sentimento chega, a escrita se arqueia, fica agitada, rodopia sem fôlego, absorvendo tudo, pondo rememorações, desejos, em um redemoinho. (...) Esta é uma imagem útil pra mim: permite-me pensar em um tempo da dor que nos acomete avançando como um vórtice;(...)”. Olga conta sua história de dentro do vórtice, diz a própria Ferrante - às leitoras e leitores resta entrar nesse vórtice e mirar a beira do abismo com a personagem.


A expressão tinha ficado marcada para Olga, talvez por ter percebido nela a inconstância de Mario. Quando o vazio de sentido chegava para ele, podia partir para longe dela, buscar outro lugar. É impressionante o que nosso inconsciente grava, o que lhe marca. Olga não sabia que o uso e o conteúdo daquela expressão lhe seriam revelados tantos anos depois.

O vazio de sentido fez com que Mario se dirigisse para fora. O vazio fez com que Olga se voltasse para dentro de si, que caísse dentro de si, que caísse em si. E nessa queda, como descreve Ferrante, não encontra vazio mas sim excesso: de memórias, de tempos, de confusão. Fantasmas de sua infância reaparecem e a assombram. Seu corpo fica presente a ponto de ela não conseguir lidar com ele. Abandona a si mesma enquanto olha hipnotizada para o vórtice. E está tremendamente só. É com a ajuda dos filhos, de um vizinho e da escrita que sairá. Com a ajuda de si mesma, dos momentos em que consegue resgatar-se.


Olga toca com os pés o fundo, e volta à tona. É com alívio que acompanhamos seu retorno. Ela faz uma elaboração importante sobre sua relação com Mario, situa uma diferença entre os dois - diferença que, segundo ela, faz com que deixe de amá-lo. Numa visita, ele lhe pergunta:


“É verdade que não me ama mais?”


“Sim.”


“Por quê? Por que eu menti? Por que te larguei? Por que te ofendi?”


“Não. Justamente quando me senti enganada, abandonada, humilhada, te amei muitíssimo, te desejei mais do que em qualquer outro momento da nossa vida juntos.”


“E então?”


“Não te amo mais porque, para se justificar, você disse que tinha caído no vazio, no vazio de sentido, e não era verdade.”


“Era sim.”


“Não. Agora eu sei o que é um vazio de sentido e o que acontece se você consegue voltar à superfície. Você não, você não sabe. Você no máximo lançou um olhar para baixo, se assustou e tampou a falha com o corpo de (x).”


- sobre o tema da escrita, indico “A escrita em dias de abandono”, de Giovana Serafini, publicada na revista Deriva (http://derivaderiva.com/a-escrita-em-dias-de-abandono/).


- o ensaio "A Frantumaglia" foi publicado no livro "Frantumaglia - Os caminhos de uma escritora" em 2017 pela Editora Intrínseca, com tradução de Marcello Lino.


junho de 2022

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