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Escrever a morte do pai

Fernanda Breda e Marieta Madeira





“O tamanho das mãos dele. Seus calos.

Comer a película que recobria o chocolate quente.

Os vários óculos pretos, de aro de chifre, espalhados por toda a casa: nas bancadas da cozinha, em cima das mesas, na beirada da pia do banheiro - sempre abertos, largados ali como um tipo estranho e inclassificável de animal.

Ver meu pai jogando tênis.

O jeito que seus joelhos às vezes se dobravam quando caminhava.

Seu rosto. Sua semelhança com Abraham Lincoln, e como as pessoas sempre reparavam nisso.

Sua falta de medo de cães.

Seu rosto. E de novo, seu rosto.

Peixes tropicais.”


Auster, Paul. A invenção da solidão




“No sofá encostado na parede havia roupas espalhadas. Vi duas calças e um casaco, algumas cuecas e meias. O cheiro era terrível. Também havia garrafas viradas, potes de tabaco, pães secos e mais lixo. Avancei lentamente. Havia fezes no sofá, tanto espalhadas como em montes. Inclinei-me sobre as roupas. Também estavam sujas de fezes. O verniz do chão parecia ter sido carcomido em alguns pontos, deixando manchas grandes e irregulares.

De urina?”


Knausgard, Karl Ove. A morte do pai




Paul Auster e Karl Ove Knausgard, dois escritores que descreveram seu encontro com as mortes dos seus pais. Mais precisamente, o encontro com o que restou de seus pais imediatamente após as suas mortes, restos com os quais os dois precisaram lidar. Escreveram sobre esse momento ímpar em primeira pessoa; escreveram e tornaram públicas essas experiências. Esses dois textos nos intrigaram fazendo ecoar a pergunta: o que é um pai?


Paul Auster, escritor norte-americano, escreve A invenção da solidão logo após receber a notícia da morte inesperada de seu pai. Era o ano de 1979. Naquele momento Paul tinha trinta e dois anos, morava no campo com sua primeira esposa e seu filho Daniel, com um ano e meio de idade. A ideia de escrever lhe veio como uma certeza: era preciso agir depressa para que seu pai, um pai que em vida “não deixara vestígios” (p.12), não desaparecesse por completo.


Retrato de um homem invisível[1] é uma narrativa autobiográfica, em que a própria escrita vai dando contornos, constituindo uma versão do pai - esse que fora em vida, por sua ausência, um mistério, uma interrogação. Será com sua morte que Auster irá reiniciar essa busca. E não é demais afirmar que é sua perda real que irá fazer com que Auster o encontre na ficção.


Seus pais tinham se separado havia quinze anos e seu pai ficara na casa em que a família outrora morara. Com a notícia da morte, cabe a Auster a dura tarefa de adentrar nessa casa parada no tempo, sem nenhuma alteração desde a época em que viveram ali: as paredes seguiam com a mesma cor, ainda havia roupas da mãe no armário e os utensílios de cozinha permaneciam os mesmos. A casa como representação da vida do pai: uma casa parada no tempo, com evidentes sinais de abandono e deterioro.

Adentrar a intimidade do pai, que deixou o mundo sem ter tido tempo de “fazer as malas”, implica em se deparar com uma lista inesgotável de “coisas que não temos nenhuma vontade de ver, nenhuma vontade de saber. Há nisso uma comoção, e também uma espécie de horror.” (p.17) Auster adentra o horror. Adentra um tempo fora do tempo, em que cada objeto conduz para inúmeras associações e lembranças perdidas: a distração em dirigir, o jeito de falar, cacoetes, sua raiva em torno de fatos de “pouca importância”... Auster vai desdobrando cada um desses traços em um movimento de fixação, de permanência - como se buscasse fixar o pai pelas palavras escritas.


Auster busca fazer o Retrato de um homem invisível: como nomeia a primeira parte do livro. À procura de sua linhagem paterna, resgata a história da morte do avô, tragédia silenciada pela família. Como se a impossibilidade de circulação daquela história tivesse projetado uma sombra sobre a imagem de seu pai, produzido seu apagamento. Restou um borrão no lugar onde poderia acender um pai. Assim, parece ser primeiramente em torno dos objetos que Auster precisará apoiar sua escrita para compor uma certa consistência de presença.


Karl Ove Knausgard, escritor norueguês, tinha trinta e nove anos quando começou a escrever Minha luta, série autobiográfica composta de cinco volumes. Estava em seu segundo casamento, já era pai de três filhos. Ele abre o primeiro volume, intitulado A morte do pai, falando sobre nossa relação com a morte, detendo-se na necessidade de ocultarmos cadáveres. Em uma narrativa não linear, conta que o pai foi professor de escola fundamental e que teve poucas oportunidades na vida, e traz lembranças de sua infância e adolescência, nas quais aquele aparece como um pai que não hesitava em apontar as falhas do filho.


“Eu tinha quase trinta anos quando vi um cadáver pela primeira vez. (...) Meu pai era o morto”. (p.208) Knausgard traz dessa maneira seu encontro com a morte do pai, ocorrida dez anos antes do momento em que está escrevendo. Fazia um ano e meio que ele e o pai não se viam quando recebe a notícia da morte, que aconteceu na casa em que o pai estava vivendo com a própria mãe. Ele já sabia que seu pai passava a maior parte do tempo alcoolizado, mas talvez não tivesse dimensionado as precárias condições da vida dele nos últimos tempos. Ao chegar na casa da avó, de onde o pai foi retirado sem vida, depara-se com essa realidade em excesso, fétida, suja, em um ambiente desprovido dos mínimos cuidados.


O trabalho de Knausgard na casa é exaustivo: limpar, limpar, limpar. Quer reerguer o que o pai destruiu para poder velá-lo naquele mesmo espaço. A narrativa desse processo de limpeza da casa chama a atenção do leitor: ele fala dos produtos de limpeza que utiliza, por onde começa a esfregar, o que encontra dentro dos armários, onde coloca o lixo. A limpeza faz parte do processo de luto do escritor: ele limpa, literalmente, a sujeira que o pai deixou. “Ah, a única coisa que eu podia fazer era limpar. Esfregar e esfregar. Lavar sem parar. Ver como cada azulejo ficava brilhando de limpo. Imaginar que tudo que fora destruído ali seria recuperado. Tudo. Tudo. E que eu jamais, em nenhuma circunstância, iria acabar como ele acabara.” (p.291)


Assim, observamos a diferença que esses dois pais marcam no que deixam para seus filhos nesse momento post-mortem. A ausência do pai de Auster (numa casa que permanecia a mesma) se contrapõe fortemente à presença excessiva do pai de Knausgard (numa casa em que nada mais estava em seu lugar). O trabalho de luto que cada um é obrigado a fazer passa por movimentos antagônicos. Enquanto Knausgard precisa eliminar o excesso deixado pelo pai, Auster vai garimpando objetos, para com eles construir associações, aproximando-se daquilo que vai dando contorno à presença do pai.


Mas Auster vai além: em um movimento de descentramento, busca determinantes simbólicos dessa condição de ausência do pai. Decide adentrar nas trevas, no silêncio – entre todas as histórias que seu pai contava do avô, todas ficcionais, a versão “oficial” não podia ser contada. Foi a partir de uma foto rasgada da família paterna – em que a imagem do avô tinha sido banida de tal forma que o remendo que ficara na imagem parecia fazer parte dela mesma – que iria acessar uma verdade silenciada[2]. Ausência sem registro simbólico? Auster, através da escrita, duplica seu avô em seu pai configurando um sentido à sua ausência.


Enquanto Auster registra a ausência de seu pai, explicitada através da foto rasgada – uma imagem onde um pai é arrancado da cena -, Knausgard registra que a imagem de seu pai é marcada muito fortemente (por aquilo que não deveria estar ali – os detritos –, mas está). Ele relata que o pai falara várias vezes em suicídio: dissera como uma pessoa (supostamente aleatória) poderia fazer para suicidar-se. E agora, tendo o pai morrido como morreu (alcoolizado, na sala imunda), ressignifica a fala do pai, e abisma-se por não ter percebido que havia algum anúncio naquela conversa: “Ele tinha me marcado com uma imagem tão forte de si mesmo que jamais vi nada além disso (...)” (p. 281)


No que diz respeito à escrita, Auster adia o final da narrativa, como se concluir o livro implicasse aí sim em perder o pai, perder essa versão do pai que acabara de configurar. “Em lugar de enterrar meu pai, para mim, essas palavras o mantiveram vivo, mais do que nunca.” (p.41) Knausgard, diferentemente, reconhece retroativamente que o livro (ainda manuscrito) que concluíra à época da morte do pai havia sido escrito para ele. Portanto o pai estava antes. Através de movimentos e estilos muito diferentes – a escrita em Auster é mais metafórica e em Knausgard é mais metonímica, como se precisasse esgotar o sentido em uma narrativa sem fim – ambos chegam em um ponto comum: atravessam um luto através da escrita. E vale lembrar Lacan quando situa, em Lituraterra, a literatura como uma “acomodação de restos”.


“O que é um pai?” Esta foi a pergunta que fez eco para nós nesses dois textos literários, e que não chegamos a responder (sabemos o quanto as perguntas são mais potentes que as próprias respostas). Essa pergunta, na leitura, e agora na nossa escrita, poderia se desdobrar em outras mais: “quem foi esse homem, o pai?”, “o que é possível construir a partir da herança paterna?”, “o que é preciso destruir da herança paterna?”. São perguntas que os escritores nos ajudaram a formular. Arriscamos uma direção de resposta, que, embora seja diferente para cada um deles (como não poderia deixar de ser), abriga algo em comum: o processo de decantação do homem/pai – fazendo disjunção entre corpo/imagem/função - pode tornar o pai menos ameaçador ou fantasmagórico, abrindo para seus filhos uma perspectiva libertadora. Para Knausgard, ao que parece, uma posição alternativa para seu olhar diante da morte:


“Nos meus sonhos ele às vezes estava morto, outras vivo, às vezes no presente, outras no passado. (...) E quando enfim despertei, por volta das oito da manhã, meu primeiro pensamento foi que ele estivera ali à noite, e o segundo foi que tinha que vê-lo novamente. (...) Dessa vez eu estava preparado para o que me esperava, e seu corpo, a pele devia ter escurecido ainda mais com o passar de mais de vinte e quatro horas, não despertou nenhuma das sensações que tinham me invadido na véspera. Agora eu via somente a ausência de vida. E já não havia diferença entre aquilo que um dia fora meu pai e a mesa onde ele jazia, ou o chão onde estava a mesa, ou a tomada na parede embaixo da janela, ou o fio que ia até a luminária ao lado dele. Pois os seres humanos são apenas formas em meio a outras formas.” (Knausgard, p.401-402)

Já para Paul Auster, sua inserção na cadeia geracional se desloca, resultando na assunção do sobrenome paterno: além de sustentar sua posição de escritor, profissão pouco valorizada aos olhos do pai, com A invenção da solidão passa a assinar seu sobrenome paterno, já que antes havia publicado somente um romance (Squeeze play) sob o nome Paul Benjamin (sobrenome materno).


À sua maneira, cada um deles consegue, ao final (da limpeza, do garimpo, da escrita) produzir algo a partir do que ficou. Que o pai seja liberto de seu corpo e possa, a partir disso, ser só Nome.



[1] A invenção da Solidão é composto de duas partes muito diversas: Retrato de um homem invisível (escrito em primeira pessoa) e Livro da memória (escrito em terceira pessoa). [2] Foto que o autor faz questão de incluir na abertura do livro.


BIBLIOGRAFIA


AUSTER, Paul. A invenção da solidão; tradução Rubens Fiqueiredo. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

KNAUSGARD, Karl Ove. A morte do pai; tradução Leonardo Pinto Silva. São Paulo: Cia das Letras, 2015.



Publicado no Correio da APPOA n 279, em agosto de 2018.

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