Caminhava com pressa pelas calçadas abarrotadas de gente. Não havia indício de que fosse mesmo acontecer, o fato é que acordara de um sonho vívido, lindo, que a fez saltar da cama direto para dentro do espelho sobre a pia do banheiro. O mesmo que tantas vezes já lhe mostrara seu próprio interior: os olhos sorrindo de alegria, os músculos da face contraídos pela raiva, as lágrimas grossas da dor. O mais constante era, no entanto, encontrar-se com aquele inchaço matinal, o olhar ainda perdido perguntando para o espelho: quem sou? que dia é hoje? como me sinto? Naquela manhã deparou-se com sua imagem já desperta, olhar urgente: tinha pressa. O sonho lhe parecera tão real que podia ser uma pista - dizem que isso acontece, não era comum, mas havia quem sonhasse com algo que acabava por acontecer, desde que o sonhador desse uma mãozinha. Quem sabe aquela fosse a sua vez? O sonho adentrando sua vida, a cena (não precisaria ser fulgurante, só singela) que daria fim à ardência da ferida incessante. Estava extenuada pela dor. Só queria descansar dela, ver cicatrizar a ferida e sentir o peito afrouxar. Melhor ainda seria esquecer que um dia houve ferida, e nem pensar mais nela, nem no peito, nem no corpo. A esquina que lhe surgira no sonho não era longe dali, precisava caminhar alguns quarteirões e pronto. Rápido! - precisava ser rápida, pois o sonho lhe indicava a hora exata, que ela conhecia pela sombra do prédio alto projetada na calçada. Sempre no mesmo horário em que se encontraram por tantos anos para juntos andarem até a estação do metrô. Em sua pressa inexplicável, irracional, onírica, acreditava que sim, podia acontecer com ela também, a realidade misturada com o sonho, por que não? Desviava das pessoas que lhe obstruíam o percurso, mirando a famigerada esquina ao longe, e experimentava a sensação do peito que oscilava, ora contraído de expectativa, ora expandido em esperança. Não era legítimo ter esperança, afinal? O pensamento lentamente se sobrepunha à correria. Pediu a ele que lhe oferecesse uma tábua onde agarrar-se, caso não visse acontecer na esquina o que imaginara. De todo modo, não desesperaria. Sempre ouviu dizer que a esperança é a última que morre. Desconhecia a diferença entre esperança e teimosia.
novembro de 2021
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