extremo hemisfério sensível
- marietamadeira
- 15 de jun.
- 3 min de leitura
Atualizado: 24 de jun.

No hemisfério sul haverá um encontro ao qual faltarei. No hemisfério norte, antes desse encontro, acompanhei um funeral. Em um dos hemisférios o encontro de escreventes no coração do sensível. No outro, a despedida definitiva de um homem que não cheguei a conhecer pessoalmente. O homem chamava-se Bert, e tinha completado sessenta anos em dezembro último - seu último dezembro, seu último aniversário. Bert é (foi) pai de um único filho, Stan, nascido no hemisfério norte, enamorado de uma jovem mulher nascida no hemisfério sul, minha filha Flora. Stan e Flora acompanharam de perto os últimos nove meses da vida de Bert, aprendendo a conhecer a travessia dos dias sabendo a morte por vir – ignoravam quando precisamente ela chegaria, porém a sentiam cada vez mais próxima. Acompanharam-se, esses dois jovens. Acompanharam Bert nos seus últimos meses, na despedida que durou o tempo de gestar-se um filho. É curioso que bordar a morte pode durar o mesmo tempo que bordar a vida, assim como o inverno dura o mesmo tempo do verão. No inverno do hemisfério norte as árvores se mostram nuas, e essa nudez me surpreende, talvez porque no hemisfério sul a escassez de folhas e sua cor acinzentada me remetam à morte. Também as aves do hemisfério norte me surpreendem, tão diferentes daquelas do hemisfério sul. Hoje é o dia seguinte ao funeral, e ainda emocionada choro admirando o azul do céu, enquanto ouço as aves, suas conversas animadas no frio do início da primavera. A nudez das árvores é inóspita, os pássaros restam famintos, mas as pessoas penduram nos galhos secos alimento para que eles resistam à estação. Não resistir é o mesmo que morrer, deixar o corpo descansar vazio de vida. Uma vez, no hemisfério sul, vi um pardalzinho entre o cordão da calçada e o asfalto numa rua bastante movimentada – estava quietinho, assustado. Eu tinha pressa, como infelizmente quase sempre tenho, mas percebi que ele estava morrendo, e não pude deixá-lo ali em meio ao barulho insuportável dos carros, os pneus passando rentes ao pequeno corpo, tudo ignorando sua existência. Tomei-o nas mãos. Em frente estava o jardim da entrada de um prédio, coloquei-o sob um arbusto de azaleias, sobre a terra, onde imaginei que poderia partir com dignidade. Uma outra vez, saindo do mar, vi um pequeníssimo peixe que oscilava entre nadar e boiar, os olhos estalados em perturbação, as guelras em movimento intenso, e também dessa vez entendi que era a morte a aproximar-se. Tomei-o nas mãos, fazendo para ele uma pequena piscina - acreditei que poderia lhe dar alento. E como no mar eu não tinha pressa, esperei e esperei até que a vida deixasse seu corpo – ali, no mar, sua casa. E houve outras vezes, com um hamster, uma cobra, com meus gatos, e eu diante do olhar último, olhar de súplica – não sei se queriam a vida ou a morte, sei que queriam o fim. Há algo de sublime nesses olhares de despedida dos quais não fugi, por entender que me convidavam a ficar, a fazer-me inteira companhia. Quando o olho estiver sem vida, quando o olho não for mais olhar, substantivo sem verbo. Quando a vida se despedir do corpo, posso testemunhar essa despedida. A vida se despede do corpo, e nessa passagem mora o mais sublime do ser: o deixar de ser. Assim como é sublime a primeira vez que o ser é, ao abrir os olhos, e os pulmões, e a boca. A primeira vez anuncia a última. Do pátio avisto uma mãe pata, obstinada e paciente, chocando quatro ovos no ninho que boia nas águas do canal, enquanto o verde brota viçoso (embora miúdo) nas árvores que me pareciam mortas. A amendoeira nua está prenhe de botões cor-de-rosa e a gata toma sol no seu lugar preferido entre os arbustos. Ouço o silêncio. Ouço asas que se abrem. Juntas voamos para longe.
março 2025
“…e eu diante do olhar último, olhar de súplica – não sei se queriam a vida ou a morte, sei que queriam o fim. Há algo de sublime nesses olhares de despedida dos quais não fugi, por entender que me convidavam a ficar, a fazer-me inteira companhia.”
Fascinante! Uma tradução sensível e poderosa sobre as transições ao transcendental. Obrigado!
Lindo texto, Marieta. Voamos contigo por esses dois hemisférios, pela vida e pela morte.
Que ótimo escrito! "Não resistir é o mesmo que morrer, deixar o corpo descansar vazio de vida" é para anotar e reler quando for preciso (e como é preciso...)!
Mari, que texto belo. Fiquei reflexivo, pensando aqui, como na maioria das vezes não olhamos para as pequenas coisas que acontecem ao nosso redor e meio que marcam nossa passagem por aqui. Não sabemos o dia de amanhã, nem se ele será o último. Mas ainda assim costumamos não dar a devida importância para o que realmente importa: seja alguém precisando ajuda (às vezes nós mesmos), seja algo que nos faz bem (mas que sempre postergamos, sabe-se lá o motivo). De fato, às vezes não resistir é o mesmo que morrer.
Seus escritos me emocinam. Obrigada por compartilhar.