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O manto da noite


por Carola Saavedra

Companhia das Letras - 2022





Você quer que eu fale. Que te conte dos dias sem céu, das águas escuras, das folhas traçando pequenos círculos. Lembra do tempo dos girassóis? É verão e aqui as flores têm dentes afiados, mortíferos, te agarram as mãos, os dedos, te mastigam com fúria as palavras sem carne. Mas você quer que eu fale, que estenda sobre a pele o tecido moroso da memória, seus bordados. Sei tecer, tens razão, dou forma a breves animais, alguns nadam, escamas furta-cor acendem cintilâncias enquanto caminhas. Há uma ilha. Conto.


Embora ansiosa para ler O manto da noite, da Carola Saavedra, assim que o recebi, guardei-o para levar para Praia Grande, onde passei a virada do ano. Não só por falta de tempo, mas também (e principalmente) porque a pequena cidade fica ao pé de uma imensa serra. É uma serra belíssima, tanto vista de Praia Grande, em Santa Catarina, sua parte baixa, como de Cambará do Sul, Rio Grande do Sul, sua parte alta. Seus cânions são impressionantes, com imponência de tirar o fôlego. Guardei a leitura pois sabia que uma das personagens de O manto da noite é a Cordilheira dos Andes, então lê-lo assim, próxima dos cânions, seria uma experiência especial - como se a leitura combinasse com o cenário, o cenário com a leitura. (Claro que com temperaturas opostas, ainda mais nessa época do ano…). Apostei na combinação fértil entre sintonias e contrastes. A propósito, ele é um romance que traz diferentes formas narrativas, de certo modo contrastantes e que conversam entre si. E desde o princípio do livro, no pré-escrito (que inicia com o parágrafo acima transcrito) é possível reconhecer o convite que Carola faz: ela vai contar uma história. Porém, essa não será uma história linear, com começo, meio e fim.


Logo adiante, compreendi melhor o convite quando a personagem encontra o irmão na Cordilheira. Foi um encontro inesperado, o irmão estava distraído e também temeroso, onde eles estão há muitos mortos, e ela diz: “Não precisa ter medo, eles não fazem nada. Como você sabe?, pergunta com desconfiança. Estão congelados, não conseguem se mover. Vem, me dá a mão, eu digo. De onde saíram tantos mortos? As guerras, e digo repetindo o que a Cordilheira me dissera, este é um continente de mortos. Vem, vamos. Para onde? Para o sul, eu digo.”


A narradora convida o irmão para pegar na sua mão, para não sentir medo dos mortos, para segui-la. “Vem, vamos” - é também para nós o convite. Como seu irmão, não entendemos bem para onde ela vai. Ela parece saber: o sul. Sim, é essa a direção. Mas o que queremos do sul? O que faremos lá? A leitura nos dá pistas: a personagem que nos pega pela mão insiste em perguntar quem são seus pais. Ela os conhece, mas duvida, não se satisfaz com que sua origem seja resumida àquele casal. E nós, estamos satisfeitos com o que sabemos de nossas origens? O que veio antes do que veio antes? Como viviam, o que sentiam nossos ancestrais? No que acreditavam? Como morreram? Como era, de verdade, nosso país, antes? E nosso continente? Onde estão nossos mortos? E nós, estamos realmente vivos? O que isso significa? Para onde estamos indo?

Sob O manto, para o sul. Isso é tudo o que sabemos. Isso é tudo o que nossa narradora sabe. Não é pouco, mas é insuficiente. É sobre isso que Carola Saavedra escreve. Sobre o que escapa à compreensão - a grandiosidade da natureza em oposição e consonância com sua vida microscópica; a requintada complexidade humana da qual faz parte sua brutalidade crua; a vida e a morte - e o que está para além. Sobre o que gostaríamos de lembrar, sobre o que gostaríamos de esquecer. De ignorar. Sobre o que nos antecede, o que sempre esteve lá - e que, mesmo assim, desconhecemos. Precisamos buscar. Uma ilha.


A ilha existia antes de nós. Sempre existiu. E as palavras ficavam ecoando, batendo cegas na copa das árvores, nas paredes que se erguiam junto ao mar. Foi assim. Mas não chore, nascemos do esquecimento. Existir é lembrar o que não vivemos.”


Existir é lembrar o que não vivemos. Para isso, precisamos lançar mão do que vivemos, do que lemos, do que ouvimos. Nesse ponto lembro do livro anterior de Carola Saavedra, O mundo desdobrável - Ensaios para depois do fim. O Mundo se desdobra nesse romance multifacetado, ecoa nele, em seus diferentes tempos, cenários e referências. O Manto é o romance possível, a consequência, texto tecido em tear com os fios lançados por Carola no Mundo. Carola tem a habilidade de trazer diferentes leituras de um “fenômeno” - que não ouso dizer qual é, não ouso escolher para ele um só nome, uma só palavra. Seria como tentar restringir a um nome a sensação que temos diante da visão da boca do Cânion Malacara. Porque, justamente, não se trata da coisa em si, do fenômeno, mas sim de como o percebemos, dos diferentes pontos de vista sobre ela. Trata-se de perspectiva.


José Saramago escreveu que é preciso sair da ilha para ver a ilha - e quando li a ilha nesse Manto, lembrei muito dessa frase. Carola Saavedra nos convida a olhar desde outra perspectiva para a Cordilheira, para o tempo, para a vida e a morte. Para o nosso próprio olhar sobre o que é a literatura. Para nós mesmos, nossas certezas, que se abalam tão tremendamente diante de nosso próprio inconsciente - um esquecimento, um sonho, uma sensação de delírio, de déjà-vu. Sob o Manto da noite, nos perdemos e nos encontramos várias vezes. A escritora nos convida para uma caminhada, uma viagem, e sabemos que ela continua depois de terminada a leitura. Pois uma vez que lemos algo que nos afeta profundamente, não podemos nos desafetar. Depois de ver, não é possível desver.


O encontro com Praia Grande traz algo dessa perspectiva. Praia Grande fica no caminho para as praias de Santa Catarina - estrada em que passei incontáveis vezes. Passei sempre mirando o litoral, as praias que se sucedem. Foi só muito recentemente que enveredei pelo outro lado, e me surpreendi com a visão dos cânions desde baixo, estupenda. Diante deles, a minha, a nossa pequenez. Ao deixar a cidade, mirando os cânions já pelo retrovisor, me perguntei como era possível não vê-los da BR- 101 - porque basta tomar a estrada, mudar a perspectiva, para perder sua dimensão. É um alento saber, no entanto, que eles estão lá, mesmo que não visíveis desde o “caminho de sempre”. É bom saber que não me mantive no “caminho de sempre”, saindo da estrada, por vezes errando o acesso, mas sem nunca esquecer de me maravilhar com a paisagem.


Talvez essa seja uma metáfora da leitura do Manto, uma metáfora do que tem sido, para mim, ler a Carola Saavedra: é enveredar por um caminho que não é o de sempre. É ser afetada de outra maneira, é me deixar levar pela mão dela: vem, vamos. Para o sul, para a ilha. E me deixo levar por esse encontro, pelo caminho improvável, incerto. Para usufruir dele, sem precisar entender. Lembro, com Clarice, que viver ultrapassa qualquer entendimento. Penso, com Carola, que o Mundo se desdobra enquanto se tece um Manto, infinito




janeiro de 2023

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