A ATUALIZAÇÃO (IM)POSSÍVEL DE UM TEXTO
O texto abaixo foi escrito há exatos 17 anos. Lembrava dele como um trabalho interessante e até bonito - música e literatura sempre foram inspirações para eu pensar a teoria psicanalítica e também a clínica, por sua capacidade metafórica e seu poder de trazer beleza para a conversa. Lembrava também de ter conseguido articular o tema do desejo e dos diferentes olhares e posições presentes numa aproximação amorosa, embora desde a escrita ter sentido incômodo ao usar as palavras “homens” e “mulheres”, ou “feminino” e “masculino” - elas me pareciam restritivas demais, pois eu já sabia que se tratavam de posições (assim como usamos posição materna ou paterna sem que elas correspondam à mãe ou ao pai, independente de gênero ou função biológica). Não encontrei, no entanto, solução para esse problema na época da escrita, e mantive o texto apesar dele, assinalando-o sempre que possível. Hoje penso que seria mesmo muito difícil fazer diferente, por a escrita ter partido da música "Teresinhas'', em que uma mulher fala de três homens que quiseram conquistá-la - e se foi nela que me apoiei, não estranha que o texto ecoe dessa maneira, repetindo a configuração da música.
Ainda que supostamente protegida pelo tempo, não quero me esconder atrás dele. Naqueles anos eu já podia estar mais a par do movimento feminista, e de pensamentos que interrogassem as posições por vezes machistas do texto psicanalítico - mas não estava. Sequer percebia como eram machistas os meus próprios pensamentos e posições. Escrevendo essas linhas me pergunto, por exemplo, por que razão escolhi falar do “desejo feminino” a partir de uma música escrita por um homem. Ouvi recentemente uma entrevista do Chico Buarque em que ele defendia que o eu lírico pode ser muitos, e muito diferentes do eu do compositor/escritor. É verdade. Mas talvez hoje eu escolhesse dar voz a uma mulher, por duas razões: por que é preciso dar voz e visibilidade às mulheres, que foram e continuam sendo tão brutalmente silenciadas e discriminadas por, simplesmente, serem mulheres. E porque uma mulher sabe mais do seu corpo e do seu desejo que um homem.
Enfim, compartilho esse texto contando com esse (im)possível da atualização. Acredito que algo importante nele se escreveu e segue se escrevendo - por colocar a pensar e interrogar. Se fosse hoje...bom, se fosse hoje, não seria Teresinha. Quem sabe reler inspire outras escritas - só que dessa vez, com voz de mulher.
Porto Alegre, setembro de 2021.
OS HOMENS DE TERESINHA
Teresinha
O primeiro me chegou
Como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia
Trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio
Me chamava de rainha
Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Mas não me negava nada
E assustada eu disse não
O segundo me chegou
Como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava de perdida
Me encontrou tão desarmada
Que arranhou meu coração
Mas não me entregava nada
E assustada eu disse não
O terceiro me chegou
Como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada
Também nada perguntou
Mal sei como ele se chama
Mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração
(Música de Chico Buarque de Holanda, 1977/1978)
Esta é a letra da música Teresinha, de Chico Buarque. Foi ela que me provocou a inquietação que dá origem a este trabalho. Servindo-me dela, visitarei algumas formas de configuração do desejo feminino. Vocês podem interrogar por que estou falando sobre o desejo feminino em um Congresso sobre a masculinidade...mas é justamente a partir do feminino que tecerei laços com o masculino, orientada pela pergunta: “o que quer um homem?”
A pergunta "o que quer uma mulher?", que os homens não se cansam de fazer, não encontra paralelo, ou oposto, em "o que quer um homem?". O homem precisa mais dos indícios do desejo feminino para situar seu próprio desejo, indícios estes que a mulher sabe tão bem montar: enfeitando-os, maquiando-os, mascarando-os. Mas acontece que a própria mulher não conhece a exatidão do seu desejo. E assim caminham, supostamente juntos, um e outro: um formulando uma pergunta intermitente que a outra nunca responderá. Juntos e separados, pares e ao mesmo tempo ímpares, homens e mulheres passam tomados pelas questões que se impõem pela dor do amor e pela urgência do desejo.
Teresinha é uma música concebida por um homem para ser cantada por uma mulher, em primeira pessoa. Embora Chico Buarque seja muito conhecido, e do mesmo modo querido, por sua habilidade em revelar o universo feminino, as vozes que ressoam desse homem que escreve o que a mulher quer dos homens é instigante. E trata-se de uma fala feminina que encontra eco nas mulheres, que se comovem, se identificam, e se apaixonam pelos versos de Chico. Mas afinal, quem fala na música? O que ela desvela? Foi necessário algum esforço em deixar um pouco de lado o feminino, e escutar o que do masculino (e por favor, não de Chico) se depreende da música. Situarei, na melodia e na letra, encontros e desencontros entre o masculino e o feminino, solitários e juntos, unidos e apartados. Meu escrito tratará da dificuldade em conjugar o masculino e o feminino, juntamente com a dificuldade em não conjugá-los. Eles estão inextrincavelmente juntos, não obstante sua diferença.
Para introduzir vocês no universo que cerca Teresinha, trago um pequeno trecho da Ópera do Malandro, peça teatral de Chico Buarque, datada de 1978. A personagem Teresinha, que nos interessa particularmente, é filha de Duran e Vitória, ambos donos de uma rede de bordéis no Rio de Janeiro. Enquanto Duran administrava os negócios, Vitória se encarregava de preparar as meninas, geralmente vindas do interior, para exercerem o árduo ofício da sedução. O casal sonhava para a única filha um casamento tradicional, com um homem socialmente importante (de preferência ministro de Estado), alguém que finalmente desse a eles o acesso pela porta da frente à vida burguesa com que sonhavam.
Teresinha se envolve com Max Overseas “acreditando” que ele fosse um bem sucedido homem de negócios. Não se enganava de todo: grande malandro, Max chefiava uma organização de contrabandistas no Rio, negócio dos mais escusos à época, e em franca ascensão. Extremamente sedutor, Max era conhecido na ralé por ser bom de cama. Sua fama, sussurrada nos porões e nas sombras, era de que as prostitutas que trabalhavam para Duran pagavam pelo privilégio de tê-lo em seus leitos.
Abismados com a notícia do casamento, que fora realizado às pressas e sem o consentimento nem a presença deles, Duran e Vitória perguntam à Teresinha como caiu na esparrela do amor. Custam a acreditar que a filha tenha, a despeito do exemplo que teve em casa, se casado por amor. Eles pensavam ter ensinado a ela que o amor nada tem a ver com o casamento. Palavras de Vitória à filha:
“Teresinha, duas pessoas podem até se amar que nem nas novelas. Só que na vida real, se você ama uma pessoa, é lógico que não vai casar com ela. Casa com qualquer outro. Veja teu pai e eu. Como é que esse casamento durou esse tempo todo? Aqui ninguém ama nem desama. (...) Porque ninguém suporta os defeitos da pessoa amada por mais de um fim-de-semana em Paquetá. Depois a pessoa amada vai ficando é muito chata. O amor vai virar exigência e exigência vai virar frustração que vai virar rancor que vai virar ódio e o ódio vai ser mortal. Aí não tem perdão, Teresinha. Só se perdoa a quem não se ama.”
É nesse momento da Ópera que Teresinha canta a música, que é sua versão do amor, do encontro.
Na Teresinha de Chico é difícil não escutar o eco da cantiga de roda Teresinha de Jesus, a segunda sendo certamente inspiradora da primeira. Nessa canção do folclore, que penso ser do conhecimento de todos, é narrado o seguinte relato: Teresinha de Jesus, caída ao chão, é acudida por três cavalheiros, todos de chapéu na mão. O primeiro foi seu pai, o segundo seu irmão, o terceiro foi aquele pra quem Teresa deu a mão. A cantiga de roda, tal qual a grande maioria das produções que habitam a infância, gira em torno de temas que necessitam elaboração. A música nos faz deparar com o pressuposto que inaugura a menina no mundo do amor, o marco da constelação edípica para a menina: Teresinha amará seu pai. Na seqüência, encontra o irmão, sujeito do outro sexo, mas que não se configura para ela como homem. Depois de passar por estes dois amores, pode chegar ao homem a quem pode dar a mão, respondendo enfim ao gesto do chapéu com o qual todos a cortejaram. Note-se que ela inicia a música sendo Teresinha, e termina Teresa.
Bem, tomemos a outra Teresinha e cada um dos homens que cruza seu caminho. O primeiro chega esbanjando oferendas: traz presentes, exibe vantagens, mostra o relógio e a chama de rainha. Assemelha-se ao homem do amor cortês, pois mais lhe corteja do que propriamente se aproxima. Esse homem que tanto oferece, será que supõe conquistar a mulher com tantos presentes? A quem ele agradaria assim? Ele parece estar mais interessado em comprovar sua própria potência através de tantos dotes, distribuindo pequenos símbolos fálicos, apostando todas as suas fichas na certeza de que ela espera dele essas migalhas de falo. Engana-se...assim não deixa ver a falta essencial para que algo do laço amoroso se estabeleça. Conforme diz Lacan no Seminário 4, "se pode amar alguém não somente pelo que ele tem, mas literalmente pelo que ele não tem". A mulher não se entregará enquanto não perceber algum sinal de falta nele, falta que ela, ainda que imaginariamente, poderia vir a completar.
O primeiro homem está preso na condição de ofertar, de agradar o outro. Os dotes que ele desfila acabam sendo traduzidos, por ela, como sinais de que ele nada tem de propriamente seu para oferecer. Só se pudesse exibir o que lhe falta, o que genuinamente o constitui, poderia fazer acontecer o encontro. Assim, esse homem aparentemente delicado demais, bom demais, acaba tendo sua essência resumida pelo que diz Teresinha ao final da estrofe: “Me encontrou tão desarmada que tocou meu coração, mas não me negava nada, e assustada eu disse não."
E então lhe chega o segundo...vindo do bar, traz uma bebida amarga de tragar, tão amarga quanto a descoberta de que a virilidade também pode ser violenta. O homem quer saber do seu passado, de sua comida, de suas gavetas. Vasculha, sem pedir licença. Adentra tudo o que ela tem de mais singelo e mais caro. Esse homem anuncia, com sua invasão, que para que ela seja mulher para ele, precisará despojar-se de sua inocência, de sua ingenuidade. Para ele, ela é uma “perdida”. Para ele, a mulher é sempre perdida. É interessante essa homofonia...tratando a mulher como objeto, esse homem, no mesmo movimento, possui e perde a mulher. A “perdida” é a puta, mas a puta não é de nenhum homem, pois é de todos eles. Basta pagar o preço. Mas o que está por detrás de que o amor seja pago, é a condição de que não haja entrega, não haja amor. Uma vez pago, o encontro está encerrado.
Esse homem chega vasculhando, mas não porque queira algo da mulher. Vasculha para mostrar que é ele quem dita as regras do jogo. Ele não lhe entregará nada. E também não quer nada que seja dela. Teria essa criatura sem falo algo que interessasse a ele? Ele escancara a condição castrada da mulher, que desperta nele fascinação e repúdio. Teresinha, com o coração arranhado por ter sua condição de mulher relegada a tal lugar, diz que não. Outra mulher poderia gozar nessa condição. Mas lembremos que Teresinha é filha de donos de bordel, por isso seria improvável que desejasse estar no amor como objeto. Era isso que seus pais esperavam dela, que fizesse um bom casamento por interesse, um bom negócio. Mas a mulher no lugar de objeto é algo que ela necessita recalcar. O segundo homem faz uso da mulher como objeto. E só.
Chega então o terceiro. Teresinha diz que ele chega como quem chega do nada. Nada traz, nada pergunta. O terceiro homem chega sorrateiro, e é interessante acentuar algo de imperceptível nesse jeito de chegar. Ele chega para ela como o trabalho inconsciente, que só é percebido e experimentado quando já aconteceu, a posteriori. E como o trabalho inconsciente, tem um efeito sempre surpreendente. Embora não saiba como ele se chama, Teresinha entende o que ele quer...ele quer a mulher. Ele lhe chama de mulher. Essa mulher que até então ela mesma desconhecia, ele reconhece nela. Tomada pelo desejo por esse homem do qual ela não conhece nem nome nem predicados, Teresinha entrega-se a ele, permite que se instale, antes que ela diga não. Teresinha é Teresa.
Deixo a música de lado, temporariamente, para retomar alguns conceitos. É inevitável retornarmos ao complexo de Édipo, pois se a interrogação deste texto se coloca em torno das particularidades da escolha de objeto para o masculino e para o feminino não podemos ir muito longe sem passar por essa formulação freudiana. O complexo de Édipo é a construção que nos faz, de tempos em tempos, tentar compreender o fascinante e delicado terreno das questões amorosas. Gérard Pommier, autor de quem me acompanharei nesse percurso, diz em seu livro, A ordem sexual: "O complexo de Édipo não é um evento passado. Mas espera no futuro, está emboscado na virada de cada encontro". Acentuo aqui a palavra emboscada, pois os eventos relativos ao encontro com o outro sexo sempre trazem surpresas. Pode às vezes parecer lógico que sejam feitas generalizações do tipo homens fazem assim, mulheres fazem assado, mas não é interessante fixarmos uma ou outra figura, pois a cada tentativa de traçar paralelos e correspondentes entre masculino e feminino, caímos em alguma emboscada. Trago uma frase de Freud encontrada no texto Algumas conseqüências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, na qual ele diz: "...habituamo-nos a tomar como tema de nossas investigações a criança do sexo masculino, o menino. Com as meninas, assim supúnhamos, as coisas deviam ser semelhantes, embora de um modo ou de outro elas tenham, não obstante, de ser diferentes." Nessa frase encontramos um ir e vir da ideia da semelhança e da diferença, e é importante que essa oscilação assim se mantenha.
O amor feminino é, desde sua origem, impossível. Fundado no amor pelo pai, interditado, é um amor que se engendra a partir do próprio limite. Pommier diz, a respeito do amor feminino:
"É um amor cruel, porém, porque seduz graças a sua impossibilidade. De fato, o papel do pai implica que ele ame uma outra (a mãe), e no entanto, é essa função que provoca o desejo. No mesmo instante, portanto, o desejo é provocado e impedido, excitado pelo que o barra irreversivelmente."
O desejo feminino é concebido a partir de uma interdição, e isso terá efeito sobre o amor. Teresinha exercita o movimento feminino da escolha amorosa em seu paradoxo: os dois primeiros homens com os quais se encontra, por serem os primeiros a colocá-la diante do desejo, a deixam assustada. É o encontro com o desejo que a assusta. É na medida em que o desejo se manifesta que ela recua.
Já do lado masculino as coisas se passam de modo distinto. O menino, à saída do complexo de Édipo, precisa identificar-se com o pai, tentando percorrer o caminho que lhe dê acesso à masculinidade. No entanto, o amor pela mãe (objeto amoroso paterno) será proibido, e isso vai impor um limite ao seu desejo. Ele vai desejar que possa fazer gozar uma mulher, mas não a mãe. Essa é sua tarefa: fazer senão com a mãe. Há uma proibição implícita no gozo. A mãe do menino não fará dele um homem, mas outra mulher sim poderá fazê-lo. O homem amará uma mulher na medida em que poderá fazê-la gozar, na medida em que ela, com seu gozo, comprovará a potência fálica dele. Portanto (seguindo com Pommier) : “o desejo masculino não é simétrico ao feminino: o primeiro é atrapalhado pelo que facilita o segundo (isto é, o amor pelo pai)”
O que me interessa interrogar é a busca masculina pelos sinais femininos de satisfação. Na música, podemos ver os dois primeiros homens ocupados em tentar agradar a mulher, ainda que de um jeito um pouco equivocado. A insistente pergunta "o que quer a mulher?" é um registro dessa busca masculina pela realização do desejo feminino. Maria Rita Kehl, em seu livro A mínima diferença, diz que essa pergunta, enunciada por Freud, só poderia ter sido feita por um homem, pois esta é uma questão para o homem. Cito:
"Uma pergunta que os homens, aliás, tentam evitar de se fazer, a não ser quando vêem sua virilidade desafiada pelas ambigüidades femininas. Antes disso, todo homem tenta recalcar essa dúvida que já o torturou pelo menos uma vez na infância, no momento em que deixou a posição de falo de sua mãe e, diante da incompletude dela, não pode deixar de se perguntar - mas afinal o que é que ela quer (que eu não lhe basto mais)? A operação do recalque tem a função de restaurar aquela crença perdida, de que ela queira sempre só o que ele tem a oferecer."
Os homens, então, se ocupam do tema da realização do desejo feminino. As mulheres não o fazem do mesmo modo, agem como se soubessem o que é preciso oferecer para fazer um homem feliz. Elas talvez saibam que precisam fazê-lo sexualmente feliz, basta que gozem com ele. Isso é mais eficiente que cuidar de suas meias, organizar seus armários, ou lembrá-los do aniversário de sua mãe. Ele, por outro lado, tenta de todas as formas agradá-la: abrindo a porta do carro, fazendo aquele enorme esforço para não esquecer do dia do aniversário de casamento, acompanhando ela a tardes intermináveis de compras no shopping. Uma situação emblemática da preocupação masculina é a formulação da pergunta: “foi bom pra você?”, muitas vezes enunciada depois de uma transa. Essa é uma pergunta eminentemente masculina. Ele precisa saber como foi pra ela... Por isso é tão comum ouvir sobre as mulheres fingirem que gozam. Não sei se vocês lembram de uma cena hilária que ilustra isso: a do filme Harry&Sally, na qual Sally, personagem vivida por Meg Ryan, simula um orgasmo numa lanchonete, em alto e bom tom. Por que as mulheres se esmeram em aprender a fingir? Porque o gozo precisa estar no jogo, ainda que seja simulado. O homem precisa saber se foi bom pra ela, pois o gozo feminino lhe oferece a garantia, ainda que temporária, de que ele é potente.
O conceito de complexo de castração tem particular importância aqui, pois acontece de forma essencialmente diferente para meninos e meninas. Cito Freud, sem maiores delongas, ainda em Algumas conseqüências...:
"Enquanto, nos meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo complexo de castração, nas meninas ele se faz possível e é introduzido pelo complexo de castração. Essa contradição se esclarece se refletimos que o complexo de castração sempre opera no sentido implícito de seu conteúdo: ele inibe e limita a masculinidade e incentiva a feminilidade."
O homem, ao ter sua virilidade ameaçada, e por ter algo a perder, tenta de todas as maneiras se comportar bem. Pelo menos, por um efeito de estrutura, sempre acaba deixando algum furo, caindo em alguma emboscada, pois às vezes não adianta lembrar do aniversário, precisa também mandar flores! Isso não tem fim...pois o desejo não tem fim. Em relação ao desejo feminino, o homem se movimenta como se estivesse num campo minado, evitando aqui e ali pisar em falso, procurando as pistas de como satisfazer a mulher. É claro que não é assim o tempo todo, pois ele muitas vezes acerta, nos momentos em que as fantasias de ambos parecem encontrar-se. Não se trata também de dizer que os homens só tenham por tarefa na vida satisfazer a mulher. Mas que eles tentam, isso tentam.
Que masculino e feminino estejam situados de modo distinto, disso já sabemos. Mas ainda vale acrescentar que essas duas posições são intercambiáveis, só dependendo da criatividade de cada um. Afinal, é pouco provável que encontremos uma ou outra em estado puro...
Retorno, enfim, a Teresinha e seus homens. Proponho que nos perguntemos por que Teresinha entregou-se ao terceiro homem. E, também, por que ele escolhe Teresinha? Em se tratando de opções tão desencontradas, por que curioso fenômeno poderiam, masculino e feminino, se arriscarem não apenas a um encontro, mas (temeridade!) ao casamento?
Ele escolherá Teresinha, se puder fazê-la gozar. Isso fará com que se sinta amado, isso fará dele um homem. Além disso, devemos reconhecer em Teresinha uma particularidade: ela deve ter aprendido, com o nobre ofício de seus pais, algo sobre a sedução. Ela sabe sobre o sexo como uma puta, mas sem sê-lo. E quer o amor. Ela não parece perfeita? É claro que isso não fará com que ele se desinteresse por todas as outras mulheres, pois a potência fálica não é transmissível de uma mulher para a outra. Como lembrou Maria Rita Kehl, a pergunta masculina, sempre repetida, precisará ser respondida a cada encontro com uma mulher, na esperança de restabelecer a crença de que o que ele tem basta, de que ele pode, sim, fazê-la gozar.
Quanto à Teresinha, é compreensível que ela queira o amor. Deseja viver esse amor que os pais se recusaram a transmitir, visto que seu casamento era um negócio. Ao escolher o terceiro (no caso, Max) pode ao mesmo tempo perpetuar a linhagem da malandragem familiar, mas contrariando o preceito parental de que isso só poderia realizar-se sem amor.
Para encerrar, gostaria ainda de marcar algo que se percebe durante a música. Vocês devem ter notado que as duas primeiras estrofes têm rimas cadenciadas, que se alternam. É como se uma fosse o contrário da outra, mas ambas numa mesma referência. Assim encontramos, entre outras, tocou/negava se opondo a arranhou/entregava, correspondendo-se nas duas primeiras, sem fazer eco com sorrateiro/posseiro, da última estrofe. Com a chegada do terceiro, a música se modifica. As rimas alternadas das duas primeiras estrofes se desencontram, algo se altera. Os sinais que caracterizavam um homem ou outro desaparecem, dando lugar a incertezas, deixando quem escuta inebriado, dessa vez não pela pelúcia ou pela aguardente, mas pela presença do desejo. O que interessa aqui é perceber que é justo no desencontro, no descompasso da música, que o encontro vai se dar. Entre iguais não há encontro, e sim simetria. O encontro só se dá a partir da diferença.
Referências bibliográficas
BUARQUE, Chico. Ópera do malandro. São Paulo: Círculo do Livro, 1978.
FREUD, S.[1925]. Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos. In:______. Edição standardt brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980.
KEHL, Maria Rita . A mínima diferença. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques.O seminário: livro 4. As relações de objeto e as estruturas freudianas. Publicação para circulação interna da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
MENEZES, Adélia Bezerra de. Figuras do feminino na canção de Chico Buarque. São Paulo, Ateliê Editorial, 2000.
POMMIER, Gerard. A ordem sexual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.
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