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Planta


Amou daquela vez como se fosse a última


Refazendo tudo, refazenda


Sonho meu, sonho meu


Frases soltas. Desconexas. Seria assim o fim? Um caça-palavras, letras misturadas em várias direções, e de repente uma palavra inteira, uma frase curta, um verso, e isso era como uma alegria. Então, se entusiasmava e tentava encontrar outro trecho, com sorte uma sequência deles, juntar dois, três...- mas era inundada pelo vazio. Tinham lhe avisado que seria melhor não fazer esforço e só lembrar da própria respiração (parecia fácil, mas não era), pausar o que já era pura pausa e inspirar e expirar e desfocar e perceber o fluxo. Go with the flow. E ela respirava, e até sentia um certo alívio.


Olhava seu corpo (e ele lhe parecia tão inteiro!): os pés, as pernas, o sexo quase esquecido. Caminhava sem muita dificuldade, e isso era um alento. Por quanto tempo sua coluna enrugada sustentaria esse corpo? Tinha pesadelos em que levantava da cama e não conseguia ficar de pé, caía como um saco de batatas, repetindo a sensação conhecida de sentir o rosto batendo no chão. E via o mundo daquela perspectiva perturbadora: ao invés de encontrar caras, outros olhos e algum horizonte, via outros pés, uma tampa de bueiro e o chão. Sentia o corpo tocando a dureza, o calor e a aspereza do chão. Tentava levantar mas não conseguia, não sabia por onde começar o movimento, e então amava o chão como o lugar mais seguro do mundo – afinal, não tinha ouvido a vida toda que “do chão não passa”? Seria assim o fim? Numa manhã qualquer, ao levantar encontraria a solidez do chão e então descansaria da dor e do medo. Das instabilidades.


Ouve uma música tocando dentro da cabeça, ela evita a letra, se deixa afetar pelo ritmo, movendo-se lentamente, balançando. Sente que é uma planta, o vento sopra mais forte e ela dança com ele, go with the flow, suas folhas vibram suaves, tremem – poderiam voar


Fly me to the moon

let me play among the stars


O vento oscila na sua rotina leve de vento, a dança não dói. Se tivesse nascido planta, teria conhecido tanta dor? Se tivesse nascido planta estaria em paz com seu destino de planta. Não teria conhecido a escrita, nem se apaixonado por ela. E não teria escrito uma frase sequer, desconheceria o prazer de encadear uma palavra com outra em composição sonora. E nunca teria lido seu próprio texto, não teria brigado com ele para depois fazer as pazes. E nunca teria experimentado a alegria de transmitir uma ideia, de revelar um sentido, um sentimento. E nunca teria escrito um bilhete sequer: Bom dia, Dé! passei café, comprei manteiga. Beijin.

O terrível era a certeza da perda, sua irreversibilidade. O tempo sem retorno.


Tempo, tempo, tempo, tempo

Vou te fazer um pedido

A vida é assim

sem bilhete

ou aviso.

Só vento.


julho, 2022

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