A semana começou úmida, por dentro e por fora, gotas de fluido pegajoso escorriam pelas paredes da casa e pelas suas vias aéreas superiores, a cabeça doendo de leve, ela resistindo, carregando o peso do corpo que nem era tão pesado assim. Ouve uma música recém-nascida pra ela (slow train, don’t you know my pain?), uma balada de ritmo lento e envolvente, que a convida a parar, a ficar onde está, mas as rotinas chamam e ela quase as cumpre – na umidade, na humildade. Dorme mal, não respira bem, toma água, vai ao banheiro, tudo se repete mais vezes do que a noite curta consideraria razoável. Acorda antes do despertador, conforme lhe informa o celular. Sabe que não devia, mas verifica as mensagens ainda deitada, ainda dormindo, lembra da música nova, põe pra tocar, é uma música boa para acordar lentamente (around the bed comes a slow train, train). O gato olha com cara de fome, ela não quer, ainda não, começar o dia. O trem se move lento pelas suas veias, ela inspira, expira, tomando coragem para se imaginar saindo à rua, vestida, maquiada, os saltos batendo na calçada em direção ao consultório, e tudo isso parece remoto. Chove independente da rotina, do que pede o dia. Finalmente alcança a porta de casa, pega o guarda-chuva amarelo e ganha a rua úmida como todas as suas vias aéreas superiores, seus olhos, seu cérebro. Está atrasada, acelera o passo (só porque precisa), passa pela cafeteria metida que tem um café que ela adora, e então para (só porque precisa) e enquanto espera confere o celular. Recebeu um áudio de 5 minutos e 28 segundos que quer muito ouvir, e enquanto ouve a atendente lhe entrega o cobiçado café, e só então percebe ser uma antiga paciente sua – mas ela não lhe reconheceu, ou pelo menos não deu sinais de que sim. Na umidade da estação se vê refletida no vidro (Standing on the platform/ Waiting for that train) e não gosta do que vê - ou sim, gosta de quem vê. Ela não sabe, na verdade. Confere de novo o celular, confere de novo o horário do trem, não vai se atrasar, não vai se perder, faz tempo que isso não acontece, não vai ser agora, justo agora - até quando vai precisar reafirmar suas novas certezas? (And I don’t know my name and/ I don’t know my purpose/ I just know my place on the slow train)
*a música é de Kevin Morby, feat. Cate Le Bon, do álbum Harlem River
julho 2023
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