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Sonhos e Unheimlich


(Texto publicado no Correio da APPOA n 157. Porto Alegre, maio de 2007. Aqui, escolhi intercalar registros de sonhos de Franz Kafka, com elaborações sobre o tema do unheimlich, à guisa de ilustração.)



“Um sonho pavoroso estragou-me o humor ao longo do dia, um sonho esquisito porque na verdade nada tinha de pavoroso, era apenas um encontro banal com conhecidos na rua... Nem me lembro de detalhes, acho que você não aparecia. Pavoroso era o sentimento que um dos conhecidos causava em mim. Acho que nunca tive um sonho desse tipo”. (Kafka, 1916)


“A interpretação dos sonhos é a via real que leva ao conhecimento das atividades inconscientes da mente” (p.647), ou simplesmente, o sonho é a via régia para o inconsciente. Esta é uma das importantes conclusões de Freud em 1900, no capítulo VII da Interpretação dos Sonhos, a Traumdeutung. O texto é certamente conhecido – não há quem transite pela psicanálise que não tenha lido, pelo menos uma vez, a Traumdeutung, detendo-se com particular interesse nos conhecidos “Sonho da injeção de Irma” e no Capítulo VII. Nesse capítulo, Freud formula a primeira tópica, estabelecendo a teoria do aparelho psíquico composto por inconsciente e consciente, o que conferiu ao inconsciente a promoção de adjetivo a substantivo - ali o conceito passa a “existir”. É também no Capítulo VII que Freud fala sobre o conceito de resistência e sua função nos trabalhos psíquico e analítico. É importante lembrarmos em que momento de elaboração da teoria psicanalítica Freud se encontrava então, pois é com base nesse ponto que trabalharemos. O propósito deste escrito é fazer conversarem sonhos e unheimlich.


No terceiro subtítulo do capítulo VII, Freud se dedica a explicar sua formulação dos sonhos enquanto realização de desejos. Num parágrafo acrescentado em 1919 (mesmo ano da escrita de O “Estranho”, portanto) Freud distingue dois tipos de sonhos quanto ao seu processo de elaboração e efeito para o sujeito. No primeiro tipo, as idéias inconscientes aflitivas, no processo de elaboração onírica, seriam transformadas no seu oposto, em idéias agradáveis, portanto. Assim, o desagradável seria suprimido, e teríamos um sonho de satisfação claro, nada restando a explicar sobre as razões pelas quais seria um sonho que realiza um desejo. Neste tipo de sonho, o desejo inconsciente coincidiria com o consciente. No segundo tipo, que nos interessa particularmente aqui, o processo de elaboração onírica seria distinto. Este tipo de sonho colocaria em questão a formulação freudiana sobre os sonhos enquanto realização de desejos, pois as idéias aflitivas assim se manteriam no processo de elaboração onírica, e assim apareceriam no sonho. Isso resultaria em um sonho com conteúdo também aflitivo, no qual seria difícil identificar a realização de desejo. Freud diz que, nos sonhos deste tipo “... o abismo entre o inconsciente e o consciente (entre o recalcado e o eu) é revelado...”.Conclui ressaltando que um sonho desse tipo pode fazer despertar o sujeito que, indignado com a satisfação do desejo recalcado, acordaria tomado de angústia. “Dessa maneira, não há dificuldade em perceber que os sonhos desagradáveis e os sonhos de angústia são tão realizações de desejos, no sentido de nossa teoria, quanto os são os sonhos diretos de satisfação”. (p.593).



“Aprumei-me; pela janelinha arqueada do tabique erguido no meio do barco, vi alguém esticando a mão num gesto de cumprimento. Apareceu o rosto marcante de uma mulher, envolto num lenço preto rendado. “Mãe?”, perguntei sorrindo. “Se você quiser...”, respondeu.“Mas você é muito mais jovem do que meu pai”, disse eu. “Sou mesmo”, replicou, “muito mais jovem, ele poderia ser meu avô e você meu marido”.“Sabe”, comentei, “é espantoso quando a gente está sozinho num barco no meio da noite e de repente aparece uma mulher”. (Kafka, folhas soltas)



Tomemos o texto O “Estranho”, contemporâneo ao parágrafo citado anteriormente. Nele, Freud trabalha exaustivamente o significado da palavra unheimlich e o de seu oposto, heimlich, encontrando a particularidade de que estas palavras, embora opostas, têm o mesmo sentido: o estranho-familiar. Freud diz que o unheimlich designa o que é assustador por ser familiar, conhecido há tempos. Freud faz a seguinte citação de Schelling: “unheimlich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz” (p.282). Posteriormente, no texto, ele vai propor uma compreensão da citação de Schelling, considerando que o estranho (unheimlich) pode ser confundido com seu oposto (heimlich) já que o estranho tem esse efeito precisamente por ser familiar, ele não traz nada de novo ou de alheio ao sujeito, mas sim algo já estabelecido para ele, mas que teria sido afastado da consciência por meio do recalcamento. A angústia, portanto, surgiria como efeito do recalcado que retorna.


Um paciente traz para sessão de análise o sonho que tivera, do qual despertara extremamente angustiado. Sonha que estava tendo relações sexuais com sua mãe e mais outro homem. O sonho provoca um efeito de estranhamento. Nele, o paciente experimenta a triangulação edípica em sua forma mais crua. A fantasia erótica fica ali exposta, fantasia que sabemos ser conhecida, de velha, mas poucas vezes revelada. Além disso, a experiência do sonho é vívida. No sonho ele, psiquicamente, experimenta essa relação sexual que repudia. E ao acordar se encontra descentrado, ou talvez seja melhor dizer que ao acordar ele não se encontra, se perde, pois está no abismo entre o recalcado e o eu do qual fala Freud.

O retorno do recalcado pode operar como revelação. O que nos interessa aqui é propor que o sonho de angústia tem um efeito de uheimlich quando mostra para o sujeito algo que ele pensava ignorar. A palavra unheimlich opera na fronteira entre o estranho e o familiar, e o trabalho com o estranho parece dar conta de algumas fronteiras, propostas no texto freudiano: entre fantasia e realidade, entre morto e vivo, entre saber e não saber. Para trabalhar o tema do estranho, Freud traz uma série de elementos do conto O homem da Areia, de Hoffmann. Para além das considerações sobre o personagem Natanael, algo chama a atenção na forma como Hoffmann conduz sua narrativa. Um dos momentos do conto que provoca no leitor o efeito unheimlich é quando ele revela que Olímpia é uma boneca, um autômato. O estranhamento advém do fato de que ela é apresentada como a filha do professor de Natanael, uma filha estranhíssima, é verdade, mas “aparentemente” viva. A notícia de que se trata de uma boneca leva o leitor a uma sensação de estranho pela própria situação de ter sido “enganado” pelo autor. O leitor se desloca da posição de saber para a de não saber, ficando à espreita de outras revelações que poderão advir, inadvertidamente, no texto.


Há uma série de textos e filmes nos quais o leitor/espectador é levado a supor algo que, no decorrer do texto/filme se mostra diferente, e essa diferença faz alterar toda a narrativa, toda a história. A revelação causa estranhamento, um típico unheimlich, um mal-estar, pois o leitor/espectador provavelmente já encontrara sinais do que estava por ser revelado. Ao perceber o engano, parece ser necessário ao leitor/espectador retroceder no texto para então ressignificá-lo, reapropriando-se do saber, organizador. O unheimlich então pode também ser lido como o abismo entre o saber e o não saber. Ele pode ser efeito do súbito encontro com uma posição de ignorância que deixa o sujeito à mercê do Outro, o que sabe.



“Chegaram sonhos, subindo o rio, subindo a parede do cais por uma escada. Paramos, conversamos com eles; eles sabem muita coisa, mas não sabem de onde vêm. É muito amena esta tarde de outono. Eles se viram para o rio e erguem os braços. Por que levantais os braços em vez de nos abraçar?” (folhas soltas)



Assim, quando Freud fala do abismo entre o eu e o recalcado, poderíamos, com o “estranho”, considerar este recalcado como sendo isso que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz. O abismo entre os dois seria provocado por esta revelação que o sonho faz ao sujeito (ou que o sujeito se faz no sonho), pela surpresa de encontrar-se com algo do inconsciente que ele supostamente desconhecia. E aqui reencontramo-nos com os pares de opostos, as fronteiras.


O interessante é pensar que a palavra unheimlich, ao operar entre os pares de opostos, entre as fronteiras, faz a suspensão dessas fronteiras, faz a suspensão da diferença, da diferença entre familiar e estranho, fazendo um equivaler ao outro. Se retomarmos o sonho do paciente, podemos encontrar nele um detalhe, para além da fantasia edípica que ele porta. No sonho o paciente está na cena primária, ou seja, está onde ele ainda não era. É a suspensão do abismo que torna o ontem para sempre perdido que o unheimlich nomeia, e que o sonho de angústia pode ajudar a exemplificar. O sonho de angústia suspende e ao mesmo tempo atualiza a diferença entre saber e não saber: de um lado o sujeito ocupa a posição de saber, visto que encontra o que deveria ter ficado oculto mas que vem a luz de forma crua e direta, e, de outro lado, é reconduzindo à posição de ignorância que ele conhece, de antiga, mas que insiste em suplantar. Daí o sonho de angústia provocar estranhamento, ser por vezes assustador, sinistro. Unheimlich.



“Insone, quase completamente; atormentado por sonhos como se eles tivessem sido entalhados em mim, um material resistente. (...). Á tarde, sonho com o abcesso na bochecha. O limite constantemente tênue entre a vida cotidiana e o terror aparentemente mais real. (...) Mas o verdadeiro espólio só se encontra nas profundezas da noite, na segunda, terceira, quarta hora.” (Kafka, 03/02/1922; 26/08/1920; 22/03/1922))


“Por que compara o mandamento interno a um sonho? Seria o primeiro como o segundo, absurdo, desconexo, inevitável, exclusivo, portador de alegrias ou medos infundados, incomunicável enquanto um todo e exigindo ser comunicado?

Tudo isso: absurdo porque só posso sobreviver aqui se não lhe obedecer; desconexo porque não sei quem o ordena, e com que objetivo; inevitável porque me pega de surpresa, tão desprevenido quanto os sonhos assolam quem dorme, embora quem se deita para dormir deveria saber que vai sonhar. É exclusivo, ou assim parece, porque não posso concretizá-lo, não se mistura à realidade e por isso não pode ser repetido; provoca alegrias ou medos infundados, aliás muito mais estes do que aquelas; não pode ser comunicado porque é intangível, e pelo mesmo motivo exige ser comunicado.” (Kafka, 7/2/1918)



BIBLIOGRAFIA


FREUD, Sigmund. O estranho. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v.17.


FREUD, Sigmund. A interpretação dos sonhos. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. v.5.


KAFKA, Franz. Sonhos. São Paulo: Iluminuras, 2003.


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