As manifestações públicas dos últimos meses causaram grande reboliço nas ruas, na imprensa, nas redes sociais. Também, pudera: há muito tempo não se viam ou ouviam reivindicações de forma tão contundente - reivindicações várias, como vários somos nós. Abrigados pela diversidade, os brasileiros se manifestaram publicamente, mostrando ao mundo e ao seu próprio país sua inconformidade. A palavra manifestação ficou ecoando ao longo desses tempos últimos: para além de qualquer dúvida, as pessoas estavam dizendo o que pensavam, o que queriam, o que não queriam mais. No Dicionário Aurélio, encontro “manifestação: ato ou efeito de manifestar-se; expressão; revelação, esclarecimento, demonstração; expressão pública e coletiva de uma opinião ou sentimento”. Interessa-me tomar a manifestação no sentido da revelação, esclarecimento, demonstração.
Fiquei às voltas com os ecos de manifestação, manifesto. A palavra é forte, e carrega consigo a ideia de que aquele que se manifesta demonstra, expressa, sendo operação que tem efeito inevitável – a manifestação é perceptível ao outro, esta é sua característica intrínseca. Manifestar-se é mais que falar, manifestar-se é traduzir-se, é dar a ver ou ouvir algo que nos habita, e isso de tal maneira que se torna evidente para o outro. A manifestação produz efeito, demanda que seu espectador tome posição, seja ela qual for.
Então, manifestar-se é dar a ver ou ouvir aquilo que habita o pensamento. A palavra manifesto me faz lembrar uma outra, que a ela se opõe na teoria psicanalítica sobre os sonhos: latente. Em 1900, Freud escreve A Interpretação dos Sonhos, texto imprescindível para aqueles que estudam a psicanálise. Nesse trabalho, Freud elabora sua complexa teoria sobre o funcionamento mental, construindo a noção de consciente e inconsciente. O sonho seria uma via privilegiada para o acesso ao inconsciente, uma vez que, ao dormir, nossos pensamentos ficariam libertos das regras às quais estão submetidos quando estamos acordados. Assim, o sonho pode ser tomado como manifestação do inconsciente “tal como ele é” – um pensamento em desordem que tem como motor a realização de desejos.
Freud faz uma distinção importante que me interessa aqui; diz que os sonhos têm um conteúdo manifesto e um conteúdo latente. O manifesto seria o sonho como o sonhador consegue lembrar, aquilo que se mostra, se revela a ele; já o latente seria a mola propulsora do sonho, sua matéria-prima, o desejo inconsciente que força seu acontecimento.
A ideia de sonho manifesto pode ajudar a ver e compreender as manifestações que acompanhamos. Elas foram expressão da insatisfação de muitos, insatisfação que não é nova, pelo contrário, é de longa data. Temos o péssimo hábito de sofrer calados, preço cobrado pela nossa conhecida docilidade, preferimos dar um jeitinho do que encarar um conflito ou dificuldade. A insatisfação e os anseios que habitam tantos de nós talvez fossem óbvios, mas, como muitas vezes acontece com o óbvio, não encontravam expressão. Eram pouco e mal formulados, temerosos de acordar e encontrar lógica, encontrar o olhar do outro, encontrar acolhida. Eram enunciados “falando de lado e olhando pro chão”, como diz Chico Buarque em Apesar de você. Podemos tomar as manifestações como a revelação de material latente, compartilhado por muitos brasileiros, manifestação que aconteceu como acontece o sonho, impelida por uma força desconhecida para o sujeito mas que, uma vez exposta, requer escuta - ela grita. É verdade que por vezes sua fala é desordenada, às vezes alto demais, às vezes carecendo de nexo – pois assim também são os sonhos, desordenados, nem sempre sabemos bem quem somos quando sonhamos, ou mesmo onde estamos. Os lugares se misturam, queremos uma coisa, depois outra. O sonho pode provocar estranhamento e perturbação.
No entanto, passado o momento da ebulição, podemos olhar para o que vivemos e tentar compreender o que se mostrou assim, de soco. Só depois. Ao narrar um sonho o sonhador vai tentar dar-lhe alguma ordem, procurando fazer com que ele se transforme em história compreensível. Assim como o sonhador fala dos seus sonhos para tentar saber mais de si, falamos e seguiremos falando sobre tudo o que vimos e ouvimos acontecer nas ruas: a violência e a paz convivendo nas caminhadas, a emoção, a euforia, o medo e a ira, o contraste entre os relatos dos fatos, a verborragia nas redes sociais, a amplitude impressionante e inequívoca do movimento. Muito foi dito na tentativa de interpretar as manifestações, e o que ficou claro desde o princípio é que a simplificação não combina com o que estamos vivendo. Para decifrar os manifestos é preciso reconhecer sua complexidade, é preciso tempo.
Um sonho, uma vez sonhado e lembrado, passa a fazer parte da vida do sonhador – ele é manifestação, é revelação que se insere na história. Mesmo que seu enigma não seja decifrado, ele mostrou-se, revelou-se para o sujeito. Também as manifestações se fizeram ver e ouvir, denunciando os sonhos e anseios de muitos, para todos os que quisessem (ou não) ouvir. São parte da nossa história, já não somos os mesmos que éramos antes delas, e isso há de fazer diferença.
Publicada no Jornal Sul 21 em agosto de 2013.
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