Tecer, um verbo. Verbo que define a ação de, a partir de um fio, fazer uma trama. Um fio que sozinho parece pouco, parece só. Mas que ao se enredar delicadamente, seja só, seja com outros fios, seja com as agulhas, passa a ser outra coisa. Sempre partindo do que podem fazer as mãos – esse instrumento, essa parte de nossos corpos que tanto nos permite, que nos é imprescindível. Com as mãos cuidamos de nós mesmas, do nosso espaço-casa, do nosso corpo.
Estamos em isolamento, em pandemia, esse pandemônio. Estamos isoladas, privadas do toque, do calor, das texturas dos corpos. O vírus chega ameaçador, tornando o toque perigo. Tudo é contágio. O que antes era simples se complexifica de maneira até agora impensável. Não tocamos mais ninguém, e tudo o que tocamos pode nos matar, pode nos tirar o ar. Simples assim, difícil e sofrido assim.
Será que por isso voltei a tecer? Recuperei o tricô, resgatei agulhas e lãs. Sem pressa, mas sempre. Devagar e sempre. Com as mãos toco a lã macia, e vejo um único e longo fio ir se transmutando em tecido, num lindo emaranhado.
Aprendi cedo a tricotar, ensinada pela minha mãe. Tricotava com ela, aprendendo a dançar com as agulhas, a ver o milagre da transformação. Éramos de tal modo próximas, que tricotávamos iguais. Eu errava, ela consertava meus erros. E, sedenta de ver o tecido se fazendo de novo, tricotava um pouco o que era meu. E não se via onde começava o de uma, onde terminava o da outra. Até hoje isso é possível: balé de mãos que foram tão íntimas, e que mantiveram um mesmo estilo de tecer.
Tenho tecido em dias tristes, desalentada, e ao ver aquele fio virar trama, virar manta, tenho alguma esperança de que a partir do pouco se faça muito. Assim como a partir de sete notas se faz a maravilha da música. Assim como a partir de vinte e seis letras se faz palavra – e com as palavras se faz poesia, se faz escrito, se faz alento.
Tenho tecido em dias alegres, exultante. De onde vem a alegria nesse tempo de perda? Por vezes me recrimino pela alegria, pela vontade de dançar, de cantar, de ler. Mesmo assim danço, e canto e leio, apesar de tudo. Porque essa alegria me traz a força necessária para seguir.
Tenho tecido, pequena frase de duplo sentido: significa que tenho passado um tempo tecendo, que tecer me acompanha. Significa também que eu tenho tecido, que tenho estofo, que não sou feita de ar, mas de outra matéria. Que resisto, que enfrento, que suporto. Que muitas vezes, na vida, a partir de um único fio de palavra escrevi histórias, construí narrativas que fizeram sustentar atos.
Tecer é gesto, movimento transformador. E é preciso transformar – não deformar, não deixar de ver, não deixar de sentir, isso não! Mas transformar a partir do único fio que temos à mão. Tecer lembra que é preciso paciência, andar de mãos dadas com o tempo. De nada vale apressar o processo. Tecer lembra que erramos sempre, ainda que pensemos saber o que estamos fazendo. E a partir do erro retomamos, desmanchamos, começamos de novo.
Ao tecer, faço mais do que as mantas que se revelam na trama. Descanso e, distraída, percebo o milagre da transformação. Às vezes parece impossível. Mas sou tecida. Quero resistir, ainda que me sinta, muitas vezes nesses dias, estar por um fio.
Publicada no projeto/coletânea TodAs EscreVemos, em junho de 2020.
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